sábado, 14 de outubro de 2017

"Nestor" ou como se ensina o "controlo do eu"

O professor 
O professor disserta sobre ponto difícil do programa.
Um aluno dorme,
Cansado das canseiras desta vida.
O professor vai sacudi-lo?
Vai repreendê-lo?
Não.
O professor baixa a voz,
Com medo de acordá-lo.
                                             
Carlos Drummond de Andrade

A ideia de usar tecnologia de reconhecimento facial em contextos laborais e escolares não é nova. Sem procurar deliberadamente informação sobre o assunto, tenho achado várias notícias (por exemplo, aqui, aqui, aqui).

Depois de ter escrito o último dos três textos que assinalo (aqui), que se reporta ao uso da tecnologia para conhecer, em tempo real, o interesse dos alunos, soube de um professor universitário chinês que, além de a usar, decidiu partilhá-la com colegas (por exemplo, aqui e aqui). Mais, criou um modelo único que considera muito eficaz. Eis a notícia que, à altura, li (aqui):
... tudo começou quando, há cerca de cinco anos, Wei decidiu utilizar um dispositivo de reconhecimento facial para registar a assiduidade dos alunos. Agora, o professor tira ainda mais partido dessa mesma tecnologia, uma vez que aproveita o dispositivo para determinar o grau de interesse dos alunos. Para isso, o professor colocou câmaras estrategicamente posicionadas na sala de aula que registam e identificam as várias reações dos alunos. 
De acordo com Wei, o sistema de algoritmos deteta as alterações de humor de cada um, mostrando se estão envolvidos, com uma postura neutra ou simplesmente distraídos. “Quando cruzamos este tipo de informação com a forma como ensinamos, ao colocar numa linha de tempo, podemos saber quando estamos a conseguir atrair a atenção dos alunos”, explica ao jornal britânico. 
O professor decidiu partilhar esta técnica com colegas e amigos, que também dão aulas em universidades chinesas, e espera agora que este método possa ajudar outros profissionais da área. “Pode ser usado para uma grande variedade de ciências sociais, trabalho psicológico e até por investigadores ligados à área da educação”, considera ainda. 
Nessa notícia, explica-se ainda o seguinte (aqui):
Big Brother escolar. O conceito de instalar câmaras em salas de aula não é novo, como explica o Quartz. Engenheiros dos laboratórios SensorStar em Queens, Nova Iorque, começaram a usar o método em 2013 para estudar o rosto dos estudantes e a usar um algoritmo para analisar as suas expressões. 
O resultado da investigação ainda não foi publicado mas o co-fundador da empresa, Sean Montgomery, defende que a ideia de estar a ser filmado não deve incomodar as pessoas. “É exatamente aquilo que o professor já consegue ver com os seus olhos e aquilo que consegue ouvir com os seus ouvidos”, argumenta. 
Mesmo assim, o conceito não agrada a algumas pessoas que temem não só ver a sua privacidade invadida mas também pelo receio de que as imagens possam ser usadas com outras intenções. No caso de Wei, o professor não esclareceu se os seus alunos sabem que estão a ser filmados e se há algum tipo de penalização para aqueles que não prestam atenção nas aulas.
Agora é notícia o uso de um software com esses fins - verificar se os alunos estão a prestar atenção com o argumento de que isso ajuda a melhorar as aulas - na Escola Superior de Gestão de Paris,  simpaticamente denominado Nestor. Em concreto, diz na notícia que (aqui):
Numa primeira fase, esta tecnologia será apenas usada com estudantes que optem por realizar um curso à distância, sendo que a ideia será depois desenvolver um sistema que alerte o professor quando um aluno estiver desatento dentro da própria sala de aula. 
O programa foi desenvolvido pela empresa LCA Learning e utiliza as webcams dos alunos para analisar movimentos oculares e expressões faciais para determinar o nível de atenção dos estudantes. 
Para além disso, o software vai formular testes, cujas perguntas se baseiam na matéria abordada durante o momento em que o aluno em questão esteve distraído (...) os defensores do uso da inteligência artificial no ensino afirmam que esta tecnologia pode ser utilizada como uma espécie de tutor virtual, adaptando-se às necessidades individuais de cada estudante.
Face à progressão do "controlo externo do eu" - com base na perscrutação do que a pessoa faz, do que pensa, do que é - e à ausência de crítica sobre isso, que se aceita como um dado adquirido e correcto, quem poderá entender o poema "O professor", de Carlos Drummond de Andrade? Quem poderá entender a delicadeza que nele se esboça na relação entre o professor e o aluno? O professor vê o aluno, interpreta e decide. Com programas como o Nestor não será, certamente, esta delicadeza que os alunos vão aprender mas o seu contrário.

Ver desenvolvimento da última notícia aqui, aqui, aqui.

3 comentários:

AMCD disse...

Deixem o aluno aprender em paz e o professor ensinar em paz.
Deixem o aluno dormir em paz, se disso necessitar, que máquina não é, nem quer ser, nem pode ser.

Estou entre os que prezam a liberdade de ensinar e de aprender. Não vejo em que nisso as câmaras possam acrescentar. Além do mais atentam contra a privacidade do acto pedagógico. Mas por que diabo a relação entre o professor e o aluno, ou entre o mestre e o discípulo, tem de ser pública, tem de ser gravada, tem de ser filmada e perscrutada, medida e analisada?

Infelizmente as câmaras já entraram nas salas de aula sem o nosso consentimento, embora tenhamos sido nós, paradoxalmente, que as levámos para lá. Há uma câmara (ou mais) instalada em cada telemóvel e sistemas de gravação ou captação de áudio que podem ser ligados à revelia de quem ensina e de quem aprende, de quem não quer que a sua voz seja ouvida para lá daquelas quatro paredes, isto se a aula for entre paredes, ou que a sua imagem e comunicação seja transmitida por outros meios que não apenas o contacto visual e a empatia directa. Infelizmente a liberdade já está a morrer nas salas de aula (o que metaforicamente pode querer dizer que as são as salas de aula que estão a morrer, e que a escola está a morrer, pois não existe escola sem liberdade). Paradoxalmente para alguns a liberdade tem de ser vigiada. Para esses a liberdade não pode andar à solta.

Anónimo disse...

Concordo totalmente com câmaras em todo o lado. Na rua. Em casa. Nos locais de trabalho. No corpo. Até apodrecer por completo a vergonha e nos podermos matar uns aos outros de forma visível, com uma visibilidade sistemática e estruturada, na qual possamos desenvolver os Estudos Gerais do "Conhece-te a ti próprio". Porque o que importa é a mecânica da coisa e sermos essa verdade e não a ética abstrata que torna a coisa densa e inoperável.

O meu sonho de paraíso é um mundo gasoso, onde a matéria flui naturalmente cumprindo a sua programação orgânica.
Pensar cria problemas insolúveis. E os problemas insolúveis devem ser abandonados por todos. Como a Escola.
Os animais nunca deveriam ter tido a possibilidade de pensar. Foi o único erro da criação.

Anónimo disse...

Em tempos bastante recentes, mas anteriores ao “politicamente correto” e ao “aprender a aprender”, licenciado, na área da educação, era alguém que tinha, acima de tudo, liberdade para ensinar. Como agora as orientações superiores do Ministério vão no sentido de aligeirar os saberes transmitidos, o que se traduz por “dizer umas graças aos alunos”, nas palavras proféticas de Maria de Lurdes Rodrigues, então o professor, com as vestes de licenciado rasgadas de cima a baixo, é visto por toda a comunidade, dentro e fora da escola, como um pantomineiro forçado.
Até quando?!

João Silva

NOVA ATLÂNTIDA

 A “Atlantís” disponibilizou o seu número mais recente (em acesso aberto). Convidamos a navegar pelo sumário da revista para aceder à info...