domingo, 28 de fevereiro de 2010

Aquilo que nos negaram

Recentemente, três alunos de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra fundaram uma associação designada por Origem da Comédia, da qual já aqui demos notícia.

São eles Miguel Monteiro de Sena, do 3.º ano do 1.º ciclo, e João Loureiro e Sophia de Carvalho, ambos do 1.º ano do 2.º ciclo.

A atitude que subjaz à sua inciativa é afirmada e construtivamente rebelde face ao apagamento da cultura clássica na nossa sociedade, em geral, e no sistema de ensino, em particular. O seu lema é dar a conhecer "aquilo que é negado" à esmagadora maioria das crianças e jovens: a cultura artística, filosófica, política, científica, fundacional da nossa civilização.

O De Rerum Natura tratou de os encontrar e falar com eles.

P: Porquê a designação Origem da Comédia para a vossa associação?

R: É imediatamente um jogo com aquela obra magistral da filosofia, A Origem da Tragédia, de Nietzsche. Mas, além dessa brincadeira referencial, inspirámo-nos ainda nessa obra para, simultaneamente, reclamar a herança duma filologia clássica apaixonada e apaixonante, que olha para a realidade greco-latina não dum modo seco e fechado, mas que busca e descobre elementos fundamentalmente humanos que esta exprimiu, intemporais, e desse modo revela o seu irresistível encantamento. E o que é mais, uma das diferenças que Aristóteles apontou para diferenciar a Tragédia da Comédia é que esta última acaba bem. Queiram os deuses que o mesmo aconteça neste nosso caso.

P: Que sentido tem a vossa associação, numa altura em que a expressão da cultura clássica é tão diminuta na nossa sociedade, mesmo em círculos onde deveria estar bem presente, como a escola básico e secundária e a universidade?

R: A Origem da Comédia surgiu, em grande medida, como resposta a esse apagamento da cultura clássica, que, como estudantes da área, sentíamos de forma particularmente aguda e perante o qual não poderíamos permanecer impávidos. Acreditamos francamente que a Antiguidade tem um profundo interesse e actualidade. Veja-se, a título de exemplo, a recentíssima encenação de A Cidade, pela Cornucópia, ou a nova versão do Rei Édipo, em cena no Teatro Nacional Dona Maria II (e no Porto prepara-se a Antígona, no São João). Porém, só é possível amar aquilo que se conhece. Ora os alunos, seja do básico, do secundário ou da universidade, pouco contacto têm, ao longo da sua formação, com o universo greco-romano que, em todos os campos, se nos impõe como primordial, peça matriz do puzzle de nós. De pouco vale aqui lamentar o desaparecimento do Latim em Portugal, quando em tantos outros países da Europa o número de alunos da disciplina aumenta. Há sim que agir para garantir à nossa geração, e às futuras, aquilo que nos negaram. A Origem da Comédia, por isso, faz todo o sentido, procurando ser uma associação de jovens para jovens (sem prejuízo das outras faixas etárias), em que, por um conjunto de iniciativas que se querem, em maior ou menor grau, diferentes do habitual e apelativas, se partilhe o tesouro que herdámos de gregos e romanos.

P: Quem é pertence e quem pode pertencer à vossa associação?

R: A associação está aberta a todos os jovens, sobretudo (mas não só) universitários. Importante é, claro, que partilhem do nosso gosto e entusiasmo pela Antiguidade Clássica, nas suas mais variadas manifestações. O processo formal de ingresso na Origem é algo que estamos ainda a estudar: encontramo-nos a redigir o regulamento da associação. Por ora, portanto, somos um grupo informal de cerca de quinze pessoas, maioritariamente de Coimbra, mas não só, todas, por enquanto, de Estudos Clássicos.

P: Ficámos a saber na nota de divulgação da associação que a actividade que organizaram para estreia são as Tertúlias Pré-Socráticas. Significa isto que pretendem revisitar, desde o seu início, o pensamento clássico?

R: Não temos qualquer plano para cobrir exaustivamente e desde os seus primórdios o pensamento grego e romano, nem queremos, de resto, focarmo-nos exclusivamente na herança filosófica ou científica da Antiguidade, pois que isso seria redutor. É até provável que a nossa próxima actividade não tenha nada a ver com esta área e que funcione em moldes bem diferentes. Temos já outras ideias, algumas, cremos, assaz arrojadas, mas, por ora, são as Tertúlias que ocupam o nosso espírito. Que não restem dúvidas, porém: mais tarde ou mais cedo, é inevitável que regressemos à filosofia, afinal é uma das maiores criações do génio grego.

P: Na nota de divulgação, referem-se aos pensadores pré-socráticos como os pais do pensamento racional, o qual veio a estabelecer as bases da ciência. Que ponte, pretendem fazer entre aquilo que, talvez erradamente, se chama humanidades e ciências?

R: O divórcio entre as ciências e as humanidades é uma realidade sobre a qual já tivemos, entre nós, ampla oportunidade de discutir e lamentar. Não deixa de ser simbólico que, na nossa primeira actividade, abordemos figuras que ambas as áreas podem, com igual orgulho, reivindicar para si. A reflexão cosmológica constitui parte inalienável e tantas vezes central da filosofia destes primeiríssimos pensadores. Será talvez de relembrar que Platão ainda inscreve, na fachada da sua Academia, o famoso dito, que se encontra embutido na entrada do nosso Departamento de Matemática da Universidade de Coimbra: não entre quem não sabe geometria. As Tertúlias apresentam-se, por isso, como um exercício de memória: tempos houve em que as “duas culturas”, na designação de Snow, eram uma. Não será possível já regressar a eles: a complexidade avassaladora das matérias não o permite mais. Isso, porém, não deve impedir um diálogo que, a ocorrer, se revelaria, por certo, frutuoso. A Antiguidade, aqui, como em tantos outros aspectos, tem uma lição para quantos queiram aprender com ela, pois que não se julgue que parte do brilho deste tão fecundo período do pensamento humano não resultou, precisamente, deste cruzamento de saberes, desta curiosidade mútua.

Como disseram, "queiram os deuses" que tudo vos corra como bem, na comédia. Muito obrigada aos três.

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