sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

O português e as ciências da educação

Na polémica sobre a língua portuguesa entre João Boavida e Desidério Murcho, chamo a atenção para o facto de a motivação do primeiro parecer residir simplesmente na sua discordância da classificação atribuída por um comité internacional de avaliadores nomeados pela Fundação para a Ciência e Tecnologia a alguns centros de investigação em ciências de educação.

Eu não trabalho nessa área e por essa e por outras razões não me pronuncio sobre os pareceres do dito comité. Mas parece-me que a promoção activa da internacionalização da actividade científica portuguesa em todas as áreas, incluindo as ciências da educação, é extremamente salutar. Posso criticar e tenho criticado o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior em muitas coisas (ainda recentemente me pronunciei contra o estrangulamento financeiro das universidades que conduziu, por exemplo, ao incrível pingar de água na sala de leitura da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, sem haver meios de poder fazer uma remodelação decente do velho edifício), mas não o critico por isso. Julgo que a comunidade das ciências da educação portuguesa, uma área pela qual me tenho interessado, publica numa proporção demasiadamente elevada em português, o que configura uma situação de endogamia que se me afigura contraprudecente e a prazo insustentável. E é tanto mais insustentável quanto as grandes questões do ensino da maior parte das matérias são essencialmente as mesmas em qualquer parte do mundo, estando escrita em inglês a maior parte da literatura sobre elas. Quando se trabalha em circuito fechado e quase exclusivamente se publica em revistas próprias ou do vizinho do lado, numa língua que a comunidade científica internacional não entende, corre-se maior risco de repetir o que outrem já disse e de errar sem se poder ser emendado.

Receio até que num país pequeno e com uma comunidade científica pequena em certas áreas, algumas ideias resistam mais facilmente à crítica dos pares do que num ambiente internacional, naturalmente mais aberto e competitivo. Só para dar um exemplo: têm sido recentemente publicadas em revistas internacionais de psicologia e de ciências de educação várias críticas bem fundamentadas, baseadas em estudos empíricos, ao chamado ensino não directivo (há quem lhe chame aprendizagem por descoberta). Mas raramente encontro em revistas portuguesas de pedagogia, pelo menos nas que costumo ver, críticas a tais doutrinas, doutrinas essas que encontram ampla consagração em textos oficiais do nosso Ministério da Educação e que não serão alheias aos pobres resultados obtidos pelos nossos alunos em confrontos internacionais. Fico com a ideia, porventura injusta, que, se quiser saber o que hoje em dia se passa de mais avançado em ciências de educação, tenho mesmo de me valer dos meus conhecimentos de inglês.

Portanto, eu que muito prezo a minha língua-mãe, que é de resto a única onde me consigo exprimir sem dar muitos erros, e que leio regularmente com bastante gosto as boas prosas que o meu colega João Boavida escreve nessa língua, penso que a comunidade nacional de ciências de educação e afinal todos nós ganharíamos se se passasse a publicar mais em revistas e livros da especialidade que sejam lidos à escala internacional. E se se procurasse publicar mais em revistas e livros de circulação global com avaliadores com maior grau de exigência. Não tenho nada contra que se publique em revistas e livros nacionais, mas porque não tentar que todos ou a maioria dos artigos nessas publicações sejam escritos numa língua franca, neste caso o inglês? Mesmo que as revistas e os livros sejam editadas aqui, a afixação dos respectivos conteúdos na Internet facilitaria a livre circulação pelo mundo e, evidentemente, aumentaria a probabilidade de crítica. Eu posso escrever artigos de ensino e divulgação de física em português, mas não ganharia nada, absolutamente nada, em escrever artigos científicos de física em português. Tenho hoje de o fazer em inglês e não me queixo. Sim, percebo que nas ciências humanas, em particular nalgumas ciências humanas, seja um bocadinho diferente. Mas porque é que há-de ser assim tão diferente?

A menos que se pense que certos conteúdos científicos só fazem sentido em certas línguas, um argumento que me parece carecer de demonstração. O físico austríaco Erwin Schroedinger, um dos criadores da teoria quântica, queixou-se um dia amargamente de um aluno estrangeiro de doutoramento que ele orientava: "Como é que ele vai aprender mecânica quântica se nem sequer sabe alemão?". A origem germânica da teoria quântica ainda hoje transparece em termos como "eigenvalues", valores próprios, que pertencem ao jargão técnico em inglês - o prefixo "eigen" é alemão e não inglês. Mas, de facto, pode-se aprender teoria quântica em qualquer língua culta, para adoptar a expressão do Desidério (ao contrário dele, acho que o português é uma língua culta, embora possa e deva ser mais cultivada). Contudo, se se quiser aplicar essa teoria de um modo que possa ser verificado e eventualmente refutado, ou se se quiser rebater essa teoria propondo uma outra em sua substituição, tem de se escrever hoje em inglês tal como no tempo de Schroedinger se tinha de escrever em alemão...

17 comentários:

Fartinho da Silva disse...

E desde quando as "ciências" da educação são ciência? Se alguém tem dúvidas em relação a esta questão, basta ver os resultados da nossa revolução pedagógica produzida nas nossas "escolas", nos nossos "professores", nos nossos "alunos" e nos nossos "encarregados de educação"!

Perguntem a 100 "alunos" que façam esta simples conta: 208/10!

joão boaventura disse...

O problema continua a afigurar-se um tanto ou quanto confuso, porque parece que as publicações produzidas (citadas em anterior post) pela instituição que João Boavida coordena, e que as considerou como temas universais, mas apagados por escritas em português.

Apesar do desenvolvimento desta temática linguística fiquei sem saber se as referidas publicações têm ou não permuta com outras referências de universidades, ou instituições congéneres estrangeiras.

Por outro lado ainda, fiquei sem saber se os referidos trabalhos teriam ou não, ao menos, um resumo em francês, inglês, alemão, espanhol, como é norma.

Em caso negativo, então João Boavida não poderá queixar-se da pouca ou nenhuma repercussão dos trabalhos que coordena e são publicados em português, sem resumos de outras línguas, porque da leitura destas poderão as congéneres estrangeiros aferir da valia publicada e considerar a necessidade ou não de os traduzir.

Aqui ficam as minhas dúvidas: há resumos noutras línguas, há permutas com publicações estrangeiras do mesmo teor?

Se assim for, os trabalhos de João Boavida permanecerão arquivados.

Anónimo disse...

Uma língua não é um mero veículo de transmissão de conhecimento. É uma obra-de-arte, uma construção única, sistemática e aberta, portadora de modos de pensar próprios, que não se reduzem a enunciados protocolares, pois reenviam à sua história, às camadas de sentido nela constituídas. É insubstituível. Só um filósofio analítico poderia pretender criar uma linguagem universal. Mas o Círculo de Viena ficou reduzido a uma tautologia.


A própria ciência, que requer a comunicação de proposições unívocas, inequívocas, desenvolve-se em todas as línguas cultas, como é a portuguesa, para quem lê Camões, Mário Dionísio, Bento de Jesus Caraça, e muitos outros nas suas respectivas áreas. Seria aliás possível, ou desejável, escrever uma dissertação sobre aspectos linguísticos do português ou sobre a estrutura narrativa dos Maias em Inglês?! Produzir directamente em Inglês um artigo acerca da descoberta de uma nova espécie vegetal na Amazónia? E para quê redigir originalmente uma tese em matemática nessa língua, quando a matemática é um código universal?

Vitor Guerreiro disse...

sim, é perfeitamente possível falar em inglês acerca dos Maias tal como é possível ler textos em português acerca da literatura inglesa. Caso contrário nunca algum português poderia aprender inglês e estudar Shakespeare no original, pois os supostos limites epistémicos impostos pela sua língua impediriam-no de o fazer.

A "filosofia analítica" não é sinónima de "círculo de viena".

Se, de repente, imaginemos, todos os utentes de outras linguas desaparecessem, restando apenas os portugueses, o português, por ser a única língua falada, tornar-se-ia a universal. Pelos critérios dos nacionalistas, automaticamente seria a mais pobre, pois a lingua universal tem necessariamente que ser "analítica", pobre, abstracta, e todas essas tolices.

Se a língua em si é uma obra de arte, então qualquer exclamação labrega nessa língua é uma obra de arte, e não apenas a arte que por acaso é feita nessa língua.

As pessoas lá insistem nos "modos de pensar próprios" mas são incapazes de explicar o que raios isto é. O "pensamento não é indiferente à língua" é uma frase feita, um lugar comum, que das duas uma: ou é trivialmente verdadeiro ou grotescamente falso, como já apontei no outro post.

"Camadas de sentido" e as "continuidades históricas" que são mais continuidades do que as outras, não passam de palavras mágicas que excitam as glandes de algumas pessoas sem que saibam exactamente ao que se estão a referir. ISto é que é empobrecer a língua: avacalhá-la com lugares comuns e ideias feitas.

Frases espertalhonas em que se enfia indiscriminadamente a palavra "processo", "cultura material" e coisinhas que tais, para fazer as delícias de quem não quer pensar, quer acreditar numa coisa que lhe dá muita tesão, e não quer saber antecipadamente de argumentos. Assim, basta alinhavar uns quantos adjectivos que transmitam às pessoas a ideia de uns gajos muito beras, muito abstractos, fanáticos pela lógica, etc, e outros adjectivos que façam as palermices nacionalistas parecer cheias de sumo de fruta e outras maravilhas que são o tutano da vida.

Deixem-se as pessoas de tretas e já que acham que o pensamento está tão ligado à língua, usem a língua para pensar em vez de repetir meramente aquilo em que já queriam acreditar antes de começar a pensar.

Pensar é pensar mesmo, não é usar "estrutura narrativa" com a esperança mágica de que algures nessa "estrutura" esteja escondida uma coisa tão inefável tão inefável, que só um fadista a gorgolejar dois bagaços e a trinar uns fatalismos é capaz de compreender.

A tese que as pessoas estão a defender mas parece que têm vergonha de afirmar explicitamente é que a língua que falamos impõe limites definidos ao tipo de teses, teorias, conhecimento, que podemos ter do mundo. Não o fazem explicitamente porque esta doutrina é indefensável. Então refugiam-se na generalidade: "o pensamento não é indiferente à língua." Pois claro que não é: qualquer proposição, em qualquer língua, tem de se exprimir com frases que sejam gramaticais nessa língua. Mas o que o nacionalista quer sugerir, ao sugerir essa trivialidade é algo intrivial: há uma alma tuga, uma alma russa, uma alma assim, assado... as quais não podemos avaliar a partir de um ponto de vista objectivo.

Acontece que eu posso pegar numa tradução de Shakespeare, no original e explicar a um português, em português, as diferenças e as razões de o tradutor ter ou não feito um mau trabalho.

O nacionalista quer apenas sugerir a existência de entidades misteriosas sem o afirmar honesta e directamente. Porque isso é demasiado estúpido de se defender, dado ser óbvio que esses supostos limites estão sempre a ser transpostos, aliás: o medo que o nacionalista tem de contaminar a língua é uma denúncia de que as tais barreiras são transponíveis ou simplesmente não existem.

e agora o fundamental: o que o nacionalista receia, de facto, é a verdade desta última afirmação, receia que as barreiras não existam e não se quer confrontar com essa realidade. Mas como não dispõe de argumentos, fica-se pelas sugestões vagas, pelas trivialidades, frases feitas e outros macaquinhos na cabeça.

A diferença entre este modo de pensar e o pensar como deve ser, é que ao pensar como deve ser, procuramos activamente aquilo que pode falsificar as nossas crenças. Deslocamos o centro de atenção do facto de crença x ser NOSSA, para um interesse puramente cognitivo em descobrir a verdade acerca de x. Só que não pode haver garantias, neste método, de que as nossas crenças de estimação são preservadas. Então o melhor conselho é simplesmente não ter crenças de estimação e valorizar apenas a verdade, em vez das macacadas da superioridade intelectual e linguística.

Anónimo disse...

E sobre este título e em Portugal, o Ministério da Educação no que é educar em seu ensino deve-o aos especialistas das Ciências da Educação, a basear-se assim e unicamente neste Curso de Ciências de Educação, em curso este que existe na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação. E talvez seja este um dos maiores dos erros do que é educar, e que é o estar-se a educar unicamente com Psicologia e sem Filosofia. E sobre esta matéria escrevi isto em 2007:
(...)
Nem uma única disciplina que se debruce sobre temas da Filosofia, da Ética, da Estética, do Pensamento, das Artes, do Artístico, matérias tão cruciais quanto imprescindíveis para que a Educação se efective com o máximo de sucesso…
Portugal, com cursos como estes, constrói a antítese de toda e qualquer produção artístico-cultural, através destas manhosas formas de se arquitectar novos conceitos de inumeros parasitismos profissionais. E tudo se resume ao mero materialismo do ganho a ser possível destruir o que ainda existe em prol do negócio e do lucro insustentável nas tão recém-chegadas instituições em seus magnânimos doutos.
Criam-se assim profissões de inexperientes e desnecessárias aptidões a não saberem validar os verdadeiros conceitos do incentivo à dignidade e valorização do intelecto, num crescente automatismo de estares num atroz retrocesso ao decente, adequado e natural processo evolutivo do Ser.

(...) Nome de curso que se deveria de inscrever num português correcto em sua significância e não fugindo a essa mesma realidade, porque e afinal o Curso de Ciências de Educação nada mais é do que um Curso de Pedagogia da Educação!
E porque se usa este outro nome que lhe deram de Curso de Ciências da Educação? Afinal quais são as ciências da educação ???
E se de Ciências se trata, onde estão as de ditas principais Ciências que deveriam de estar associadas à EDUCAÇÃO que são elas a ÉTICA e a ESTÉTICA?
Desde quando a Educação se detém a qualquer antecipação de Ciência ou se auto intitula de Ciência em Ciências ?
É que através de um bom Ensino a ensinar-se bem em suas adequadas pedagogias poderá eventualmente surgir uma qualquer outra nova ciência, mas a situação inversa jamais se poderá verificar!
Falácias previamente institucionalizadas ou enganatórias conjecturas em estratégias comercializáveis do Ensino e da Escola?
O que dizer destas supostas modas em vaidades das tão desmesuradas e teorizáveis distracções ? (...)


E sobre o Inglês e o que é culto, certamente todos estes especialistas ou de ditos cientistas das Ciências da Educação dominam muito bem o Inglês, mas de que serve ou do que tem servido afinal?

Vitor Guerreiro disse...

Repare-se neste absurdo: a língua não é "apenas" um meio de comunicação porque nela há coisas que "remetem" para a história ou para uma vida mental limitada por essa mesma língua.

a) mas o que é "remeter" para a história senão a transmissão de determinados conteúdos? A menos que se esteja a falar em participação ou comunhão mística num qualquer espírito que se revela na história

b) se a língua impusesse de facto estes limites, aquilo que os nacionalistas temem nunca poderia acontecer: a "degradação" da língua. Só podem temer a degradação da língua se esses "limites" forem afinal ilusórios. Por outro lado, seria impossível hoje haver estudos clássicos, pois o que as pessoas estão de facto a estudar são línguas que foram substituídas, em muitos casos para pior: quem nos dera a claridade e a transparência do latim. Devíamos aprender com os ingleses, que não têm medo de usar o latim e o grego muito mais do que nós, até nos contextos triviais. Eu por exemplo, não tenho medo de escrever "umbrela", que não só é a raiz latina do inglês "umbrella" como consta no dicionário português, não sei bem como. Até é admirável não escreverem que é de origem obscura ou que vem do inglês hehe. Ainda usamos a palavra "umbroso" por exemplo. Mas aposto que até os nacionalistas se encolhem com a sonoridade e preferem usar qualquer coisa que afaste a sonoridade latina. Se há algo que gosto no inglês é esta falta de medo em usar as palavras livremente. Ao contrário do que sucede em português, onde até a ortografia vão meter nas mãos do estado.

Quantas vezes são os idiotas dos nacionalistas os primeiros a sentir que não podemos escrever coisas como "umbrela" porque os ingleses têm mais direito do que nós a usar expressões latinas livremente e outras coisas, como o uso livre dos prefixos.

Mas se uma pessoa tem um interesse puramente cognitivo na sua área e vê a língua apenas como aquilo que é, como um instrumento para um fim, é vaiado com idiotices sobre o imperialismo inglês. E no entanto não sou eu quem tem medo de escrever latinices e inventar com os prefixos sem ter medo de levar reguadas dos linguistas que se enroscam com os mandatários do estado e do autoritarismo imbecil.

Helena Damião disse...

Muitos imputam às ciências da educação, ou à pedagogia (designações que se tomam, por vezes, como sinónimos) o estado do ensino, da aprendizagem, das escolas, dos sistemas educativos. De certo modo compreendo que assim seja, pois toda e qualquer medida que se tome na área da educação, por mais estranha que se afigure, é invariavelmente apresentada como pedagógica. Não há, por exemplo, currículo ou programa escolar que, logo nas primeiras linhas, dispense a “fundamentação pedagógica”.

Esteja, no entanto, o leitor atento às instâncias e pessoas responsáveis por essas medidas. Se o fizer há-de encontrar associações de pais e encarregados da educação, “academias de explicações”, escolas públicas e privadas, e autarcas com diversos níveis de escolaridade, físicos, matemáticos, historiadores, geógrafos, línguistas, filósofos, sociólogos, políticos de todas a cores… Pela minha parte, arrisco dizer que a maior parte destes sujeitos nunca leu sequer uma linha da investigação credível que se faz na área em que tão à vontade opinam e decidem…

O grande problema é que qualquer um se acha “cientista da educação” ou “pedagogo” e facilmente se lhe reconhecem créditos se o seu discurso for… aquele que o senso-comum entende por… pedagógico.

Anónimo disse...

Para o senhor Vitor Guerreiro não deturpar, com o seu pensamento abstracto, os dois parágrafos com que comentei o tema, aqui vai o comentário completo, que, por algum motivo informático, não consegui enviar.
Acerca duma diatribe do filósofo analítico Desidério Murcho contra a língua portuguesa (não é culta) e contra a redacção de dissertações e artigos académicos na nossa língua mater.


E não será este novo Latim, esta nova língua universal, uma nova endogamia à semelhança da língua do império romano, que criou na Europa, como uma sequela que durou centenas de anos, uma elite de letrados a produzir uma cultura concentralizadora e uniforme?


Não foi a ruptura vernácula do Renascimento que prodigalizou a maravilhosa diversificação imprevisível e criativa que todos conhecemos? Teremos todos de nos tornar satélites dos Estados Unidos a produzir segundo o seu modelo e o seu Inglês, ignorando a riqueza específica de cada língua?


Uma língua não é um mero veículo de transmissão de conhecimento. É uma obra-de-arte, uma construção única, sistemática e aberta, portadora de modos de pensar próprios, que não se reduzem a enunciados protocolares, pois reenviam à sua história, às camadas de sentido nela constituídas. É insubstituível. Só um filósofio analítico poderia pretender criar uma linguagem universal. Mas o Círculo de Viena ficou reduzido a uma tautologia.


A própria ciência, que requer a comunicação de proposições unívocas, inequívocas, desenvolve-se em todas as línguas cultas, como é a portuguesa, para quem lê Camões, Mário Dionísio, Bento de Jesus Caraça, e muitos outros nas suas respectivas áreas. Seria aliás possível, ou desejável, escrever uma dissertação sobre aspectos linguísticos do português ou sobre a estrutura narrativa dos Maias em Inglês?! Produzir directamente em Inglês um artigo acerca da descoberta de uma nova espécie vegetal na Amazónia? E para quê redigir originalmente uma tese em matemática nessa língua, quando a matemática é um código universal?


Além disso, queremos um mundo policentrado, não enfeudado à América, que não vai ser para sempre a única superpotência, situação que já se vislumbra num horizonte próximo. Também o Vaticano e o seu Latim pareciam de pedra. Mas a fluidêz da água é mais duradoura.

Vitor Guerreiro disse...

Sim, lugares comuns são sempre melhores do que abstracções, sobretudo porque dão menos trabalho, nem é preciso pensar.

Que tem isto a ver com enfeudamentos aos EUA?

ninguém escreveu CONTRA a redacção de artigos em português. Passo a vida a fazer textos em português e a tentar fazer isso o melhor possível. O que se contesta é:

a) o nacionalismo linguístico
b) a imposição de escrever em português

Se os nacionalistas querem fazer algo com o português então, by all means: parem de brincar com frases feitas e lugares comuns e CULTIVEM a língua. Burilem-na. Força. Dá mais trabalho do que fazer panfletos acerca daquilo que o estado devia obrigar os outros a fazer.

Vitor Guerreiro disse...

Vou dar um exemplo muito concreto do que se passa aqui:

vão ao site da amazon e vejam o livro "Musicophilia - Tales of Music and the Brain" do Oliver Sachs. Custa 4 libras. Para quem lê inglês e se interessa por estes assuntos é porreiro não? Podem também ver uma série de títulos sobre música que vão das 4 às 16 libras.

Agora imagine-se quem só lê português: vai à livraria e paga 18 euros e uns cêntimos pelo volume, que tem dois revisores, dois tradutores e está cheio de erros que podiam ter sido evitados olhando duas vezes para o que se está a fazer e resistindo ao vírus português de complicar o simples para parecer mais profundo.

Agora digam-me quem sai beneficiado, quem lê inglês ou quem está dependente das traduções.

Por outro lado, tentem estudar música a sério só com bibliografia portuguesa original. Pois o que há disponível, com uma ou outra excepção, é isto: MERDA!

Ora, quem escrever em inglês e trabalhar com publicações internacionais com critérios de qualidade muito acima dos que se pratica por cá, e além disso fizer divulgação séria em português, está realmente a contribuir para ajudar os portugueses, ao contrário das palermices nacionalistas, que quando muito ajudam os profissionais da política.

Mas mais uma vez: alinhavar lugares comuns e frases feitas é sempre mais irreverente e mais "concreto", e o pessoal não tem de se esforçar muito.

Vitor Guerreiro disse...

os nacionalistas não se decidem: quando se trata de fazer elogios cheios de alma ao português, ala de frases feitas sobre o "universalismo", coiso e tal.

Mas o universalismo dos outros já é uma grande chatice!

Se há mal num escritor indiano fazer romances em inglês, então há algo de perverso num escritor angolano fazê-los em português...

O disparate desaparece se pararmos de ver as coisas pelos binóculos da competição pela superioridade intelectual e pela marcação de territórios... que leva às palermices do "imperialismo" e coisas que tais.

Policentrado por policentrado, prefiro o centro onde tenho mais bibliografia relevante e pernas para andar. Por que raios é que a diversidade tem de ser vista como um equilíbrio de poderes em competição?

Vitor Guerreiro disse...

Pois, porque a expansão do latim e do inglês e outras línguas, para o nacionalista, são coisas muito más. Mas a expansão do português pelo mundo é uma coisa muito boa. Não se percebe porquê. Não se os vê protestar quando os escritores angolanos, moçambicanos, etc, escrevem em português. Mas provavelmente acham "imperialista" um indiano escrever em inglês ou um argelino ou um egípcio em francês.

Vitor Guerreiro disse...

Os soviéticos também pensavam que a imposição do russo aos seus satélites da Europa de Leste (programas como os de fazer as criancinhas terem um "pen-pal" da URSS, por exemplo) não era "imperialista", como a expansão do inglês. Era diferente, uma imposição democrática-popular, porque era feita com nobres propósitos revolucionários. Os nacionalistas portugas pensam exactamente da mesma maneira, mesmo quando parece que são ideologicamente inversos aos ex-soviéticos: a nossa expansão é fixe e a dos outros é má. Versões diferentes da mesma macacada. Os russos também pensavam que a língua não era um mero instrumento. Era o suposto veículo de um inefável conteúdo ideológico que definia o "novo homem" em construção. Assim, falar na língua deles implicava basicamente defender o marxismo-leninismo segundo a cátedra ou ir tirar férias ao gulag. Os nacionalistas só parecem mais moderados porque a presente conjuntura não lhes permite fazer mais do que lançar umas metáforas ressentidas e fazer panfletos sobre aquilo que o estado, se tivesse tomates e virtude, obrigaria os sacanas dos outros a fazer.

Vitor Guerreiro disse...

a diferença fundamental é que a expansão do russo naqueles casos:

a) não ocorria espontaneamente, por iniciativa dos indivíduos
b) não ocorria com fins exclusivamente cognitivos e sim para fins políticos alheios ao interesse das pessoas

O que os nacionalistas por cá querem combater não é algo deste género. O que eles querem é algo equivalente ao exemplo de um húngaro nacionalista que ficasse muito preocupado com o facto de os seus conterrâneos andarem a aprender demasiado russo de livre e espontanea vontade, por motivos puramente cognitivos, por exemplo, haver maior bibliografia relevante para a sua área em russo do que em húngaro.

Anónimo disse...

«E para quê redigir originalmente uma tese em matemática nessa língua, quando a matemática é um código universal?»

A matemática é um código universal, mas o texto que o acompanha não! E nos resumos dos artigos matemáticos por regra quase não há fórmulas.
Assim, se posso concordar que se escrevam as teses na língua de cada autor, já não me parece viável que todos os artigos de investigação sejam sempre nela redigidos. (Não estou a dizer que o autor do comentário que citei o tenha feito.) Pelo que vejo, investigadores matemáticos actuais franceses, alemães e russos publicam também parcialmente, pelo menos, em inglês. Exemplo: Scientific papers of Wadim Zudilin .
Por outro lado vejo que é exigido, em certas Universidades americanas e inglesas, que os candidatos compreendam uma ou duas línguas de entre o francês, alemão e russo.
Julgo ser impossível um especialista estrangeiro, por exemplo, português compreender artigos matemáticos escritos em russo, na maioria dos casos, se não o dominar minimamente.
Em que língua é que o matemático russo Grigori Perelman publicou os seus artigos que o consagraram com a medalha Fields em 2006, embora não tenha comparecido no ICM desse ano para a receber, pela sua demonstração da conjectura de Poincaré? Em inglês. (Esta demonstração foi considerada o maior acontecimento cientifico do ano pela Science 22 December 2006 ) .

Anónimo disse...

Para se perceber melhor a importância das palavras que acompanham a notação matemática, cito um trecho do post Take advantage of the English language de Terence Tao, outro medalhado no ICM2006:

"Mathematical notation is a wonderfully useful tool (...). However, just because you can write statements in purely mathematical notation doesn’t mean that you necessarily should. In many cases, it is in fact far more informative and readable to use liberal amounts of plain English; if used correctly and thoughtfully, the English language can communicate to the reader on many more levels than a mathematical expression, without sacrificing any precision or rigour. In particular, by subtly modulating the emphasis of one’s text, one can convey valuable contextual cues as to how a statement interacts with the rest of one’s argument."

O itálico é da minha responsabilidade.

joão viegas disse...

"A menos que se pense que certos conteúdos científicos só fazem sentido em certas línguas, um argumento que me parece carecer de demonstração. "

Não me parece que seja esta a questão. O problema depende antes de saber quem é o beneficiario do trabalho de investigação cientifica.

No texto, ha uma ideia implicita que é a seguinte : os falantes de português não são os principais destinatarios do trabalho de investigação (realizado em instituições publicas portuguesas), mas sim a "comunidade cientifica" que fala principalmente em inglês. Os falantes de português apenas podem receber o trabalho "secundario" de divulgação...

Esta ideia também carece de demonstração.

Não me parece que o problema levantado tenha uma solução "simples", como seria preconizarmos o uso exclusivo do português, ou do inglês.

E obvio que ninguém hoje em dia pode pretender fazer ciência se estiver de costas voltadas para o que se faz noutros paises. Nessa medida, ha que preparar os investigadores a trabalhar em inglês (e não so) : lendo (para tomarem conhecimento do que se faz noutros paises) e escrevendo (para darem a conhecer o trabalho que realizam).

Agora isto não me parece justificar que se abandone, ou que se passe a considerar secundaria, a produção de trabalhos de investigação em português.

Eu sei pouco de ciências da educação, mas presumo que estas ciências visam melhorar ... a educação. E parece-me relativamente natural que os investigadores portugueses realizem estudos e trabalhos tendo em vista que eles vão ser lidos... pelos profissionais da educação em Portugal, que lêem de preferência em português.

O que eu quero dizer com isso é que ha que determinar o que é instrumental e o que é o principal.

Eu percebo que os investigadores digam : primeiro esta a qualidade cientifica, pois se o trabalho que desenvolvemos não tem valor cientifico, não estamos a fazer nada... Aceito o argumento.

Mas este argumento tem limites. Eles são obvios nas ciências humanas : para que serve termos investigadores de mérito internacional reconhecido em filosofia politica, em economia ou em ciências da educação, se os portugueses não beneficiam nada com isso, se eles continuam a viver completamente à margem dessas ciências ?

E mais : que valor podem ter os trabalhos dos investigadores nessas ciências se eles não procuram manter contactos com a realidade social em que se enquadram... Não vos parece que um investigador em ciências da educação tem tanto ou mais a aprender com o estudo da realidade portuguesa (e com a comunicação com as pessoas que trabalham nessa area) do que com o que pode lêr em inglês ?

Portanto o argumento pode perfeitamente ser virado do avesso : "A menos que se pense que os falantes de português vão todos passar a falar inglês amanhã, ou pelo menos passar a utilizar preferencialmente o inglês em tudo o que diz respeito à ciência e à educação, um argumento que me parece carecer de demonstração. "

O que eu critico na postura do Desidério, é ele fazer totalmente abstracção das finalidades sociais da investigação e da ciência, como se a ciência pudesse manter-se num espaço aéreo, com a sua lingua propria, e evoluir de maneira completamente auto-suficiente.

Se assim fosse, a comunidade cientifica não falaria inglês, mas uma lingua ideal, matematica, pura, completamente transparente.

Se a ciência utiliza as linguas naturais, é porque ele tem a ver com a realidade.

Dito isto, concordo com o autor do texto quando ele defende que é uma questão de medida : nem a preocupação de escrever (em português) para a comunidade portuguesa deve ser levada ao ponto de separar os investigadores portugueses do resto do mundo (e nomeadamente da ciência feita noutros paises), nem a preocupação de estar a par do que se faz no estrangeiro deve levar os investigadores a esquecer que eles não fazem investigação para outro planeta, mas inseridos numa sociedade particular que espera beneficiar com o seu trabalho.

NOVA ATLÂNTIDA

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