quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

“Poesia temperada com música”



A palavra mágica

Certa palavra dorme na sombra
de um livro raro.
Como desencantá-la?
É a senha da vida
a senha do mundo.
Vou procurá-la.
(…)

Carlos Drummond de Andrade



Liguei a rádio ao início da tarde e penso ter ouvido bem: que a edição que estava no ar de Os Sons Férteis era a última. Não a última do ano, mas a definitiva.

Digo "penso ter ouvido bem", pois a notícia apanhou-me desprevenida e, nestes casos, duvida-se do que é certo. Na verdade, não contava que o autor de um dos melhores e mais antigos programas da Antena 2 o desse por encerrado.

Sentir-se-á falta da poesia que Paulo Rato temperava com música.

E sentir-se-á falta porque, como Drummond de Andrade escreveu, as palavras dormem nas sombras dos livros, precisam sempre que alguém as procure e as diga para que voltem à vida. Era o que Paulo Rato e os seus colaboradores faziam todos os dias úteis, de segunda a sexta-feira. Muito obrigada a todos.

Aqui transcrevo o texto que encerra Os Sons Férteis:

"Esta foi a última edição do programa Os Sons Férteis. Disposições legais, relacionadas com a aposentação, não permitem a continuidade da minha colaboração com a Antena 2. Para trás ficam quase catorze anos e meio, para mim extremamente gratificantes. Releve-se o lugar comum, que o não é aqui.
Foi-me naturalmente grato, ante de mais, o incentivo dos ouvintes, que são os destinatários do trabalho de cada profissional de rádio. Um apoio que, desde os primeiros tempos, muitos se deram ao incómodo de, pelos mais diversos meios, me fazerem chegar.
Inestimável retorno, com elevado juro, do que de mim investi neste projecto, é constituído pelos contactos que fui estabelecendo com muitos poetas, em não poucos casos conduzindo a laços de amizade, que representam o mais rico património que poderia acumular. Alguns desses autores integraram a programação de Dezembro, embora não todos os que desejaria, por razões de planeamento.
Simultaneamente, homenagem e celebração muito pessoais na única vez em que a selecção de textos para Os Sons Férteis partiu de uma raiz afectuosa.
Ficam os meus agradecimentos a todos os que colaboraram no programa desde o início. Recordo Edite Sobreireiro, António Cardoso Pinto, Maria Clara, António Jorge Marques. Também, técnicos e sonorizadores. E, naturalmente, a mais assídua colaboradora, a actriz Edite Sobreireiro.
Agradeço, ainda, o apoio incondicional de sucessivas direcções de programas.
Aqui termino este percurso. Outros afins se hão-de iniciar.

Como gosto de dizer: encontramo-nos por aí.
A poesia, essa, continua."
Paulo Rato

Imagem: El trovador (1954) de Juan Ismael
(Retirada de http://www.culturacanaria.com/arte/westerdahl/3.html)

terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Dois protestos


O Público de hoje publicou duas cartas de protesto relativas à minha peça de opinião intitulada "Liberdade e Preconceito". Eis a primeira delas:

Na qualidade de habitual leitor do PÚBLICO, venho desta forma transmitir-lhe o meu desagrado pela publicação de um artigo de opinião de um vosso cronista, publicado na pág. 3 da edição do passado dia 24 de Dezembro.
O artigo em questão era assinado pelo sr. Desidério Murcho e tinha como título: "Liberdade e Preconceito".
A razão do meu protesto é de o considerar insultuoso, não apenas para mim como, acredito, para muitos milhares de leitores do jornal. É, aliás, com muita estranheza que vejo que um jornal que considero de referência, no panorama da imprensa em Portugal, permite que um seu cronista insulte os seus leitores.
Presumo que o colunista em questão não é um homem de Fé, quanto a isso não tenho nada a opor, mas isso não lhe dá o direito de classificar como "adultos insensatos" todos aqueles que, como eu, acreditam que um copo de vinho se pode transformar em sangue. Não por qualquer passe de mágica, nem mesmo por qualquer combinação química, mas pela Fé.
Na verdade, o colunista tem toda a liberdade para assim não crer, mas, pelo estatuto académico que tem, deve perceber que a liberdade tem balizas, que não pode adjectivar daquela forma quem pensa de forma diversa dele. A má-criação e a arrogância que ressaltam do seu artigo são pouco consentâneas com o seu nível intelectual. (...)
Domingos Sá, Porto

A segunda carta de protesto é esta:

Quero desde já afirmar que escrevo esta carta na minha condição de cristão católico e que o faço em reacção à vossa edição, tristemente, da véspera de Natal. Começo por dizer que, por mais esforços que faça, não consigo habituar-me à falta de profissionalismo e de conhecimento com que os órgãos de comunicação social em geral tratam matérias religiosas ou matéria de fé. Compreenderá, pois, que muito menos consiga aceitar discursos jocosos e de mau gosto sobre as mesmas matérias.
No entanto, o que se passa na edição de 24 de Dezembro passado é pior do que isso: é o insulto, na sua mais pura forma, e a falta de respeito total e absoluta para comigo, para com o Papa, para com a Igreja Católica e, em última análise, para com a Pessoa de Jesus, Pessoa em que acredito, que muito estimo e que me esforço por seguir. E sigo-O através da instituição que Ele próprio criou e nos deixou e onde se nos dá constantemente através dos Sacramentos, em particular do Sacramento da Eucaristia.
Que o PÚBLICO tenha a sua própria linha editorial e que nela não inclua a promoção e a defesa dos valores em que eu acredito, é uma coisa. Que o PÚBLICO, no seguimento dessa linha editorial, caia no discurso baixinho, rasteiro, insultuoso e ofensivo, é outra completamente diferente. Devo dizer que lamento profundamente ver o PÚBLICO resvalar e cair na publicação de textos que só o rebaixam e lhe retiram nobreza de atitude e de carácter.
Que o senhor Desidério Murcho pense o que pensa, diga o que diz, não me admira, não faltam desidérios por aí. Rezo por todos eles, para que o Espírito Santo os ilumine e pela sua conversão, já que, de momento, pouco mais posso fazer por eles. Mas que a direcção do PÚBLICO dê o seu aval à publicação de um despautério sem qualificação possível é que já me admira, e muito!
Devo ainda questioná-lo sobre o seguinte: não é isto claramente um uso abusivo do acesso aos órgãos de comunicação social? Não é isto um profundo desrespeito pela tolerância que o seu jornal tanto apregoa? Não é isto uma falha deontológica grave? E porque é tão importante o que a Igreja Católica pensa e diz para pessoas, grupos e lobbies que em quase nada se identificam com ela? Confesso que não consigo entender esta sintomática incapacidade de auto-afirmação e total ausência de um discurso afirmativo e positivo. Repare bem como se pega num discurso do Papa (este ou qualquer outro), o qual é inequivocamente afirmativo e positivo, e se o apresenta ao público de uma forma tão negativa, tão crítica, tão destrutiva e - quantas vezes! - tão distorcida e mentirosa. É isto informar? É isto profissionalismo? É isto uma atitude séria, íntegra e nobre? Não, meu caro José Manuel Fernandes, não é. E isso, garanto-lhe, surpreendeu-me muito, E entristeceu-me. (...)
Gonçalo Almeida Garrett, Lisboa
 
Em parte, eu já respondo a estes protestos na minha crónica de hoje, Ditadura de Alabastro, mas também no artigo mais longo "Orwell, Caricaturas e Liberdade de Expressão", além do artigo "Insulto". Este é um tema a que regressarei nas páginas do Público, pois parece-me que há uma incompreensão, que importa esclarecer, da natureza da liberdade de expressão.

Criminalizando a ciência

Uma das prendas de Natal da minha adolescência que mais apreciei foi um kit de química que me permitiu muitas e boas horas de descoberta da ciência.

Hoje em dia esse tipo de brincadeira científica é encarado como uma actividade criminosa, pelo menos por terras canadianas onde um estudante de química foi preso pela polícia por ter construído um laboratório em casa.

Aparentemente a polícia pensou que tal facto apenas podia significar que o jovem de 18 anos se dedicava a sintetizar metanfetaminas em casa. Quando uma inspecção mais cuidadosa revelou não ser esse o caso, a polícia mudou a acusação para fabrico de explosivos - que qualquer pessoa com dois neurónios químicos sabe poderem ser produzidos sem problemas na cozinha apenas com produtos de limpeza, isto para não falar das potencialidades bombistas de fertilizantes para a agricultura ou mesmo de dejectos de pássaros.

Embora o advogado do jovem tenha tentado explicar à polícia que este apenas tem um interesse genuíno por ciência, o inspecter Engele, encarregue da investigação, acha que o grau de «sofistificação» do laboratório não engana ninguém: quem sabe tanto de química só pode mesmo ter intenções criminosas...

E eu a pensar que era ridícula a recente incursão da ASAE pelos laboratórios universitários nacionais!

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

A escola do Cerco, os ovos e os fantasmas

Do nosso colaborador habitual Rui Baptista vem um comentário ao caso da escola do Cerco no Porto:

Do editorial de Nuno Pacheco do jornal “Público” de 27/12/2008 extraio um pequeno pedaço de prosa: “O coro de indignações que se seguiu à divulgação do vídeo da escola do Cerco é essencialmente hipócrita”.

Assim sucedeu, por exemplo, com Mário Nogueira, porta-voz da Plataforma Sindical de Professores, que surgiu, de imediato, nos média a repudiar o sucedido. Tudo estaria bem não se desse o caso de os exemplos deverem vir de cima. Com efeito, há quem veja o argueiro no olho alheio e não veja a trave no próprio olho. Isto porque os dirigentes sindicais são professores de raiz mesmo que afastados da docência quase que a partir da data em que obtiveram o respectivo diploma. Apesar deste afastamento do dia-a-dia das escolas, deviam ser os primeiros a ter um comportamento cívico irrepreensível, que servisse de exemplo aos alunos.

Mas, para que se não se pense haver da minha parte aproveitamento oportunista deste caso na crítica que acabo de fazer, nada melhor do que a transcrição de linhas finais do meu livro “O Leito de Procusta” (2005, p.119):

”Neste livro, em cronologia de artigos publicados que permitem um historiar do que ocorreu no universos educativo (apenas em década e meia), pus, diversas vezes, em causa posições vindas do mundo sindical quando defende capelinhas de interesses dos seus dirigentes ou dos seus associados. Descurando, nos corredores do poder, a Catedral do Conhecimento e seus devotos maior número de vezes do que é tolerável! Outras tantas, em manifestações de rua pautadas por um comportamento pouco digno de aplauso!”

Acresce que certas manifestações ruidosas com palavras de ordem pouco correctas de dirigentes sindicais à porta das escolas na presença dos respectivos alunos, aquando da visita oficial de figuras da hierarquia do Estado, não constituem, de forma alguma, lições de civismo que possam contribuir para uma desejável formação dos jovens escolares. Depois não nos podemos admirar que alunos atirem ovos a essas figuras sem que se ouça por parte dos sindicatos quaisquer palavras de reprovação. Os fins não justificam os meios.

Perante a desconfiança, por parte do presidente da Associação de Pais do Porto, Manuel Valente, de alguma cumplicidade dos sindicatos na divulgação do vídeo da pistola de plástico, Mário Nogueira “reagiu com indignação, acusando-o de ter ‘fantasmas’ ” (Público”, 27/12/2008). Até posso admitir a indignação do seu protesto. Mas nada justifica o facto de os sindicatos terem como que passado uma esponja sobre o arremesso dos ovos e serem agora intolerantes para com o caso da escola do Cerco. Ou seja, como escreveu ainda Nuno Pacheco, no mesmo texto, “muitos dos candidatos a justiceiros deviam olhar primeiro o espelho”.

domingo, 28 de dezembro de 2008

2009: Desejos de um bom debate


A habitual crónica dominical de J. Norberto Pires no "Jornal de Notícias" de hoje:

A coisa que mais sinto em Portugal é a ausência de debate: parece que estamos numa fuga permanente à realidade. Os portugueses não se envolvem nas opções tomadas para o país, alheando-se de forma preocupante dos caminhos que seguimos e dos objectivos a atingir. Mesmo em momentos eleitorais assiste-se à total ausência de confronto de ideias, onde o importante é a imagem dos candidatos, sempre fiscalizada pelos comentadores profissionais e jornalistas (com foco na postura, na gravata e na pose), e os "soundbytes" que emitem, rejeitando aqueles que tentam formular um raciocínio minimamente coerente. Nada nos discursos para as televisões e jornais tem mais de meia dúzia de palavras, e nunca ultrapassa os três itens.

As eleições são mais ou menos como o campeonato de futebol. Existe o Benfica, o Sporting e o Porto, e a grande maioria vota como se estivesse a puxar pelo seu clube e pela nova estrela que o clube contratou. Os outros clubes pouco contam, servem simplesmente para animar o campeonato. Depois a estrela contratada como sendo o próximo Eusébio, afinal não marca golos e é meio coxo. Mas, para os fervorosos adeptos, basta que ele acerte na bola uma vez sequer para que o delírio se instale nas bancadas. E todos os jornais e televisões do “desporto” mostram a jogada fabulosa em que a nossa estrela, por uma vez na vida, acertou na bola. Mas ninguém repara para onde ela foi. Isso não interessa nada, a estrela é mesmo fabulosa.

Depois, ano após ano, ficamos muito tristes quando, por momentos, a seguir a um jogo internacional, nos apercebemos que afinal somos o que somos: uma equipa da 3ª divisão europeia com a mania que vai ganhar o troféu internacional, se Deus quiser. Logo a seguir é prometido o próximo Eusébio e... “agora é que vai ser”, “vamos a eles que até os comemos”. Olhar no espelho sempre foi muito difícil, e o melhor é ignorar e acreditar nos vendedores de ilusões.

Na vida política e social em Portugal tudo é um pouco assim. A estrela do nosso clube promete o que sabe que não pode cumprir. Promete não aumentar as cotas aos sócios, mas falha esse golo logo no primeiro minuto do jogo de abertura, promete mais empregos no clube, mas a bola nem pela linha final sai, promete reformular a escola de formação do clube, mas não conta com os jovens que formamos e arranja um conflito enorme com os treinadores das camadas jovens, promete uma revolução no estilo de jogo, mas sai um mal amanhado “plano técnico” escrito nas costas de um envelope (que entretanto perde...), promete métodos de treino inovadores e nacionais, e afinal sai o velho “Fernão” que já é refugo nas Américas sendo aqui apresentado como “nosso”, promete revolucionar a equipa fazendo treino com os melhores clubes americanos, esquecendo que o nosso campeonato é outro e as regras são diferentes. Sem os resultados anunciados, diz que são dele os resultados dos outros. Ora bolas!

Eventualmente, no final do campeonato, nós os adeptos vamos eleger uma outra estrela. Que fará da mesma maneira, falhando os golos, perdendo os jogos, e afundando cada vez mais o nosso clube.

O meu desejo para 2009: Bom debate. O nosso clube precisa!

J. Norberto Pires

Questionando a existência de Maomé

Uma controvérsia acesa desenrola-se em terras teutónicas sobre a existência histórica de Maomé. A polémica reacendeu na Alemanha há cerca de três anos com a publicação do livro «The dark beginnings: new research on the origin and early history of Islam» (Die dunklen Anfange. Neue Forschungen zur Entstehung und frühen Geschichte des Islam). No livro, Karl-Heinz Ohlig, professor de Estudos Religiosos e História do Cristianismo na Universidade de Saarland, considera que as evidências existentes sugerem que o islamismo era nos primórdios uma seita cristã e que Maomé provavelmente nunca existiu. Como refere Ohlig:

According to the evidence of Christian literature under Arab rule from the 7th and 8th centuries, as well as from Arab coinage and inscriptions from this period, such as that on the Dome of the Rock in Jerusalem, the new rulers adhered to a Syrian-Persian form of Christianity that rejected the decisions of the Council of Nicaea*. Instead, it regarded Jesus as the messenger, the prophet, the servant of God, but not the physical son of God, who is a strictly unitary being not "adjoined" to any person. The fathers of the Church, for instance, regarded John of Damascus (d. around 750) as a heretic, because his Greek understanding of Christianity did not correspond to their views. There is no mention of a new, independent religion of the Arabs before the 9th century.

Ohlig explica ainda a origem do nome Maomé com base nas inscrições encontradas em moedas da época:

Muhammad means 'the blessed one' (benedictus), and what the coins show is Jesus.... Muhammad was, following this, originally a Christological title, like the predicate God's servant ('abd-allah'), prophet, messenger, messiah. The predicate muhammad then broke free of its original reference to Jesus, and was historicised in the figure of an Arab prophet with the name Muhammad, while the second title, 'abd-allah', became the name of the Prophet's father. This historicisation of the Christological predicate took place in the first half of the eighth century. Toward the end of the eighth century and the beginning of the ninth, as the Koranic movement established itself as the independent religion of Islam, Muhammad evolved into the founder of this religion, and the events were relocated to the Arabs' homeland.

A polémica atingiu novas proporções com as declarações recentes de um estudioso do Islão de renome internacional, Muhammad Sven Kalisch, 42, que dirige os Estudos Islâmicos na Universidade de Muenster - e que forma os docentes que ensinam esta religião para o número crescente de muçulmanos nas escolas secundárias alemãs.

Kalisch revela que a conclusão de que Maomé muito provavelmente nunca existiu decorre naturalmente de muitos anos de investigação histórica rigorosa. Kalisch, que contrariamente ao que algumas rumores dizem, não se escondeu com medo das reacções que as suas declarações provocaram e de que o The Wall Street Journal nos dá conta -, declarou ainda que considera que as três grandes religiões monoteístas têm origens míticas, ou seja, que Moisés, Abraão, Jesus Cristo e outros patriarcas judeus nunca existiram:

"My position with regard to the historical existence of Muhammad is that I believe neither his existence nor his non-existence can be proven," Kalisch said in a statement. "I, however, lean toward the non-existence."

He told the Star he holds the same position regarding Abraham, Moses and the other Jewish patriarchs, as well as Jesus Christ.

There have been threats, campaigns for his dismissal from his post, and dozens of media interviews, commentaries and editorials. According to Der Spiegel magazine, a group of more than 30 German academics have signed a petition supporting Kalisch's right to scholarly freedom of expression.

Kalisch explica ainda o que sugere serem as origens gnósticas das mitologias subjacentes a estas religiões

The myth of Mohammed ... could be the product of a Gnosis, which wanted to present its theology in a new and original myth with a new protagonist, but actually is the old protagonist (Moses, Jesus). For the Gnostics it always was clear, that the issue was not historical truth, but rather theology. Moses, Jesus and Mohammed were only different characterizations of a mythic hero or son of god, who would depict an old spiritual teaching in mythical form.

Gostei em particular da forma como Kalisch termina a entrevista ao Star:

Asked whether he thought his public airings of his findings will destroy peoples' faith, he said: "It will destroy a literalist faith, a faith no longer reliable because of reason. But, the God I believe in is not a god of literalists. He is the Ultimate One. God doesn't write books. All the various sacred books are the product of human minds and experiences. They can be helpful but they must be interpreted for today."

Kalisch maintains non-Muslim scholars who agree with his hypothesis but keep silent out of "respect" for Muslims are in fact treating them as though they can't handle the truth.

"That's not respect, it's putting Muslims on the same level as small children who can't think and decide for themselves and whose illusions of Santa Claus or the Easter Bunny one doesn't want to destroy."

sábado, 27 de dezembro de 2008

Crónicas Decorativas de Pessoa


Fernando Pessoa tem sempre algo de novo a dar a cada um de nós. A mim deu-me a "Crónica Decorativa II", incluída no livro que o Pai Natal me deixou "Contos, Fábulas & outras ficções", com organização, prefácio e notas de Zetho Cunha Gonçalves (Bonecos Rebeldes, 2008). O autor do conhecido poema sobre o binómio de Newton e a Vénus de Milo não deveria ser anti-científico, mas aquela crónica é dos textos anti-científicos mais bem escritos que conheço. Tal como a engraçadísima "Crónica Decorativa I" sobre a inexistência do Japão, que saiu em "O Raio" (nº 12, 12/Setembro/1914, lê-la aqui), também a segunda crónica foi escrita em 22/Agosto/1914, para a mesma publicação, mas não chegou a ser publicada por "O Raio" ter sido extinto.

Num misto de humor e absurdo, um narrador conservador e anti-científico conta a catastrófica descoberta feita por um "explorador moderno" de que a "Pérsia realmente existe". Lê-se no texto:
"Eu julgava que a Pérsia era apenas o nome especial que se dava à beleza de certos tapetes".
E continua:
"Se bem que os exploradores modernos sejam, como em geral todos os homens de ciência, susceptíveis de erro mais que os outros homens, disse-me há pouco um jornalista que no facto merece crédito. A ser verdade (eu ainda hesito) resta saber que nome se vai dar de hoje em diante aos tapetes persas? E a poesia persa a propósito - que nova denominação vai ter?"
Nesta altura o leitor quererá saber a sequência. Ei-la:
"Serve-me este assunto de tema para expor certas opiniões que há muito tempo uso sobre o modo extraordinariamente intenso como, de há tempo para cá, a ciência grassa e o espírito científico nos ataca. Se daqui a pouco o pólo sul vai também desatar a ser real, não sei a que ponto chegaremos. Breve existirá tudo e não longe o dia, talvez, em que basta sonharmos uma rainha medieval para ela nos entrar, contemporânea e anatomizável, pela porta adentro, depois de bater à realidade da campainha e de se fazer anunciar pela presença beiroa da criada.

Afirmou-me um amigo meu, o qual, por culto, me merece um crédito dubitante, que lerem livro de Guyau que um Keats brindara coisas más para a memória de Newton porque ele fizera qualquer cousa como descobrir leis que tinham a ver com os astros. Se ponho certo vago na minha descrição é porque não tenho a mínima ideia do que Newton fez ou descobriu. O facto, agora, é o brinde de Keats. Este brinde contém uma intenção justa. A aplicação é que é péssima. Não fez mal a ninguém descobrir as leis dos astros. Eles sempre foram visíveis. E a sua boa qualidade de serem longínquos, não a tirou a descoberta de Newton, fosse ela qual fosse; e, de mais a mais, essa descoberta, sendo matemática e portanto totalmente com feição de falsa, fez, do mal inevitável, o menos possível".
E por aí adiante. Tal como a "Crónica Decorativa I" uma verdadeira delícia!

Humor - Os 12 dias do aquecimento global



Vídeo dos "Minnesotans for Global Warming"

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

DE MIUZELA PARA O MUNDO


Minha crónica no último número deste ano da "Gazeta de Física":

Eu não sabia onde ficava Miuzela. Desde Agosto passado que já sei: é uma aldeia no interior profundo de Portugal, no concelho de Almeida, distrito da Guarda. Fui lá por ser miuzelense um dos físicos portugueses mais notáveis do século XX , José Pinto Peixoto (1922-1996), professor da Universidade de Lisboa e especialista em geofísica.

Peixoto doutorou-se no MIT (de facto, a defesa da tese foi em Lisboa, mas quase todo o trabalho foi feito no MIT) e trabalhou mais tarde em Princeton. Um dos seus colegas e amigos do MIT foi o físico norte-americano Edward Lorenz (1918-2008), o autor da célebre formulação da teoria do caos segundo a qual o bater das asas de uma borboleta pode originar um tornado no Texas. A tese de Peixoto, Contribuição para o Estudo da Energética da Circulação Geral da Atmosfera, foi submetida no ano de 1958, que foi declarado pelas Nações Unidas "Ano Geofísico Internacional" (passadas cinco décadas, 2008 é o "Ano Internacional da Terra"). O geofísico português foi o autor de um dos primeiros modelos sobre o movimento global da atmosfera, proposto na mesma altura em que no Hawai, sob a direcção de outro norte-americano, Charles Keeling, começavam as observações sistemáticas das emissões de dióxido de carbono que constituem um grande suporte experimental para os conceitos de efeito estufa e de aquecimento global.

Na escola primária de Miuzela, num dia muito quente, falei para as pessoas da terra sobre o aquecimento global, para o que me preparei com base no manual de Peixoto e Oort "The Physics of Climate", publicado em 1992 pelo American Institute of Physics, e dos seus artigos de divulgação na Scientific American e na Recherche. Se o famoso Professor fosse vivo (faleceu inesperadamente um ano antes do tratado de Quioto) seria hoje famosíssimo pois os média não cessariam de lhe fazer perguntas sobre o aquecimento global. E ele haveria de responder a tudo, sempre rigoroso e, ao mesmo tempo, sempre bem disposto, pois não há um princípio de incerteza que limite o humor quando se é exacto. O seu rigor alicerçava-se na sua sólida formação matemática, uma vez que se tinha licenciado nessa disciplina antes de se formar em geofísica. Ele sabia que sem matemática não pode haver física e, por isso, não pode haver geofísica. Nas suas palavras: A matemática está para a física assim como a gramática está para a literatura. A gramática ensina a expressar bem as ideias, se as houver! Não cria literatura.

Lembro-me bem da primeira vez que o vi, num seminário em Coimbra sobre termodinâmica, de ter sorrido com uma das suas extraordinárias frases: A senhora da limpeza desentropiou-me o gabinete todo. A linguagem do Prof. Peixoto, nas aulas ou fora delas, podia ser bastante colorida, como mostra o exemplo que dava da produção de entropia por humanos: Meus meninos, como fazem para se livrarem da vossa entropia? Sim, puxam o autoclismo. Tal como o seu contemporâneo Feynman (que, como ele, esteve no MIT e em Princeton) Peixoto era um físico divertido e algumas das suas tiradas bem podem ser equiparadas às do físico novaiorquino. Como disse Lorentz, onde estivesse o Peixoto, o ambiente mudava. Uma alteração climática local, portanto.

A Associação Casa de Cultura Prof. Dr. José Pinto Peixoto, sediada em Miuzela, distribuiu no dia em que lá fui prémios aos melhores alunos do ensino primário local. Essas distinções servem para lembrar que o seu patrono era filho de professores primários e estudou em Lisboa no Instituto do Professorado Primário. Mas essa associação tem também um prémio nacional para o melhor aluno do secundário, que tem sido ganho por alunos de vintes. Se graças ao Prof. Peixoto Miuzela já estava no mapa da ciência mundial, com estes prémios está hoje no mapa da educação nacional.

Humor : O monólogo do Pai Natal cansado


Post de humor natalício do físico Armando Vieira, que dá conta do desabafo do Pai Natal no final da sua longa noite de trabalho:

Odeio o Natal. Odeio, odeio, odeio! Logo eu que tinha obrigação de cumprir a tradição. Mas o que é demais é demais. Também um velho tem o direito de se fartar. Estou imensamente cansado. Todos os anos a mesma lenga-lenga: “Pai Natal traz-me isto”, “Pai Natal traz-me aquilo”, “Pai Natal não te esqueças”, “Pai Natal portei-me bem durante o ano”, bla, bla,bla. Pensam que me enganam com aqueles sorrisinhos lânguidos de arrependimento? Já não posso com esses diabos que me querem convencer que agora são anjos. Depois de empanturrados com consolas topo de gama, carros telecomandados, computadores de último modelo, roupas de marca e outras coisas que a minha fraca memória não consegue fixar, mandam-me às urtigas. Nem sequer uma palavrinha de agradecimento...


Ingratos! O balúrdio que gasto nessas prendas todas. E as horas que passo e as dores de cabeça que arranjo a ler indecifráveis manuais técnicos para distinguir um processador Centrino 3 de um Pentium 4 com placa gráfica de 512 Mb e rendering 3D para os meninos jogarem o “Mortal Combat 5”. E nunca ficam satisfeitos. Se pudesse, em vez de brinquedos dava-lhes mas era umas boas palmadas no rabo para ver se ficavam menos exigentes e mais bem educados.


Sabem quem é que paga a factura desta cangalhada toda? Pois sou eu. Não há nenhuma rubrica do Orçamento de Estado destinada ao Pai Natal: desminto categoricamente que seja eu o responsável pelo défice! Nem sequer tenho um saco azul, até na cor do saco tive azar. Como o pólo norte não está a nadar em petróleo, a única saída que tenho é contrair empréstimos. Porém, depois da crise do “subprime”, os bancos já não me emprestam cheta. E passei a levar com um agravamento dos juros antigos por exercer uma profissão de alto risco. Isso quando essa gente dos bancos não se faz ao piso para receber também uns presentinhos. Tenho cá uma pena deles! Um bom presente dava-lhes eu: virem aqui para o pólo norte dar de comer às renas para ver se lhes esfriava a ganância.


Quero mudar de vida. A solidão, o frio e o escuro deprimem-me. Já fui a um psicólogo que me aconselhou a fazer meditação. Mas com o stress em que ando não consegui meditar. Pus anúncios no jornal a ver se arranjava um substituto, mas, quando lhes digo o que vão ter de dar sem receber um cêntimo, chamam-me otário e desligam-me o telefone na cara.


Raios partam quem me enfiou aqui neste fim do mundo gelado na companhia de gnomos assexuados. Podiam ao menos ter-me arranjado uma Mãe Natal. Já não digo alguém na flor da idade, pois não queria tanto, mas ao menos uma velhinha, ainda que caquética, que me fizesse uns chás e bolinhos. Um tipo sai à noite e só encontra renas e duendes amaricados. No desespero desta solidão a que fui condenado ainda um dia faço uma loucura. Depois não se queixem. Um Pai Natal é um homem e um homem não é de ferro...


Estou farto, mesmo farto. Como Frankenstein, também eu amaldiçoo o meu criador. Também eu queria vingar-me desse cobarde que me obrigou a ombrear com as suas virtudes - bondade, simpatia, paciência, etc. - sem me dar os seus defeitos. Maldito sejas. E, já agora, não tinhas outra roupa mais “sexy” para eu vestir do que este manto parolo de avô em adiantado estado de senilidade? Não havia uma outra cor além deste vermelho espalhafatoso que não condiz com nada? E dizes-me para que serve este gorro de palhaço? Pareço uma salsicha ambulante!


E que raio de maluquice foi essa de me mandares descer pela chaminé? Será, grande tótó, que desconhecias o que era uma porta? Onde é que já se viu uma pessoa ter de descer pela chaminé com um saco carregado de prendas? Ainda por cima, como não está nas especificações dos construtores civis, muitas casas nem sequer têm uma chaminé decente. Será que foi um truque para que os meninos cujos pais têm maior poder de compra fossem os únicos a receber prendas?


Devo ter entregue só este ano milhões e milhões de prendas. Mas quantas recebi? Quantas vezes pensaram em dar uma prenda, uma só, ao Pai Natal? Pensam que "isto é o da Joana”? Está decidido. Para o ano vou fazer greve. Não há Pai Natal para ninguém. O imbecil que me inventou que se encarregue de distribuir as prendas sozinho se for capaz. Eu vou para o quente, para uma ilha da Polinésia completamente deserta de crianças.


Pai Natal

"Só surpreende a pistola desta vez ser de plástico"

De novo um vídeo (para ver clique aqui) mostrando violência sobre professores numa escola do Porto, ainda que a arma seja de plástico, tal como em muitos assaltos a bancos. Ouve-se o aluno gritar "Dá-nos positiva ou não?", tal como um assaltante armado que pede ao funcionário do banco para lhe dar o dinheiro. Mas, como titula o "Jornal de Notícias" de hoje, na manchete de primeira página: "Só surpreende a pistola desta vez ser de plástico" (ler notícia aqui). A Direcção Regional de Educação do Norte (DREN) desvaloriza o triste episódio, o que nos deve levar a valorizá-lo. A DREN não é um bom exemplo para ninguém. Podemos concluir que o caso anterior de um filme feito por um aluno com um telemóvel numa sala de aula de outra escola portuense não serviu de lição à DREN, que, está à vista, não actuou como se impunha. A Directora da DREN, ao lamentar "que a comunicação social saiba do sucedido antes do Ministério da Educação", está, sem talvez se aperceber, a fazer uma auto-crítica. Não seria melhor informar-se sobre o que se passa nas escolas sob a sua supervisão? Se não sabe não deveria saber?

"A VOZ DA NATUREZA": SALDANHA VISTO POR QUENTAL


O livro recentemente publicado de Antero de Quental (retrato na imagem) "Contracapas" (Tinta da China, 2008), com atribuição, organização e prefácio de Ana Maria Almeida Martins, contém alguns pequenos mas deliciosos inéditos do grande poeta e filósofo português oitocentista. São, na maior parte, recensões não assinadas, elaboradas para a revista "Ocidental" que ele dirigiu com Jaime Batalha Reis.

A seguinte extracto refere-se a um livro filosófico-teológico do Marechal Duque de Saldanha, sim esse mesmo que tem um largo com estátua em Lisboa e que foi, além de militar, várias vezes ministro e quatro vezes primeiro-ministro de Portugal. A apreciação de Antero de Quental pode resumir-se no adágio popular: "Quem te manda a ti sapateiro tocar rabecão?". Mas, sendo um pouco mais longa, vale a pena lê-la não só pelo seu conteúdo como pela qualidade da escrita. Não há dúvida sobre a autoria da nota crítica até porque o livro mostra o fac-simile do manuscrito, com a letra de Antero.
"A Voz da Natureza: ou o poder, sabedoria e bondade de Deus, manifestados na criação, na conexão do mundo inorgânico com o mundo orgânico e na adaptação da natureza externa à estrutura dos vegetais e à constituição moral e física do Homem", pelo Marechal Duque de Saldanha - Londres, W. Knowles, 1874.

Este livro é um estudo sobre dos tópicos principais daquela pretendida ciência, que, no século passado, alguns sábios ingleses, mais piedosos dom que consequentes, intentaram fundar com o nome de Teologia-natural, e que ainda hoje é cultivada, posto que sem fruto apreciável, em vários seminários protestantes. O assunto é ingrato e facilmente descamba em tedioso. Querer explicar a natureza pela Teologia é empenho proximamente tão absurdo como querer explicar a Teologia pela natureza. Qualquer das duas coisas redunda em tautologia e frases vagas e declamatórias - e é, com efeito, a que se reduz a pretendida Teologia-natural dos deístas ingleses. Estes inevitáveis defeitos do género, que a ciência e elevação moral e poéticas dos próprios Newton, Humphry Davy e outros altos espíritos não lograram ocultar nas obras que consagraram a estes assuntos, não é muito tornarem-se ainda evidentes no livro do sr. Duque de Saldanha, militar, político e diplomata, que só em horas perdidas e distraidamente empunha a pena, como homem do mundo e não como filósofo. Mas há assuntos em que não é permitido ser medíocre. Sentimos que o sr. Duque de Saldanha não se tivesse lembrado disto antes de mandar imprimir o seu livro. A competência é essencial em todas as coisas, e é grande ilusão supor que a filosofia deva ser excepção a essa regra. Sem pretendermos dar conselhos, mas emitindo simplesmente o nosso voto, entendemos que a experiência colhida pelo sr. Duque de Saldanha no decurso duma longa vida, passada toda num teatro vasto e animadíssimo, podia ser aproveitada em livros mais interessantes e instrutivos, uma vez que esses livros tratassem dos incidentes dessa vida, que em pontos se confunda com a nossa história, e das cenas representadas nesse teatro, onde por vezes coube ao general e ao político o papel de protagonista. Um simples capítulo de memórias militares e políticas do sr. Duque de Saldanha teria incomparavelmente mais interesse e valor do que todos os volumes possíveis que sua excelência consagre a questões filosóficas. Nestas, é muito natural que aos militares e diplomatas prefiramos simplesmente.... os filósofos".

Revista "Ocidental", 1º ano, tomo 2, 5º fasc., 15/Julho/1875

Comentários marados


O serviço de RSS dos comentários está com um problema qualquer que ainda não consegui localizar. Podemos comentar, mas os comentários não são enviados para o RSS, de modo que quem usa o RSS, como eu, para acompanhar as asneiras que todos dizemos por aqui ficou sem saber das últimas novidades. Vamos ver se consigo resolver a coisa. Desconfio que é um dos nossos posts que deve ter código HTML ou XHTML errado. 

NEWTON E O NATAL


Conforme lembraram alguns média nesta época do ano, o dia 25 de Dezembro é a data tradicional em que nasceu Jesus Cristo, desconhecendo-se não só a data exacta como até o ano (há uma pequena margem de erro à volta do ano um).

Um dos nomes mais famosos da história da humanidade nascidos em 25 de Dezembro de 1642) foi o inglês Isaac Newton (curiosamente nasceu poucas semanas depois da morte do pai). Mas a maioria das enciclopédias indicam a data de 4 de Janeiro do ano seguinte. Como se explica a diferença? É simples. Newton nasceu, de facto, no dia de Natal de 1642, mas no calendário juliano que então vigorava em Inglaterra e noutros países da Europa do Norte, que corresponde a 4 de Janeiro de 1643 no calendário gregoriano (o que está hoje em vigor em quase todo o lado do mundo).

Lembre-se que o calendário gregoriano se iniciou em 1582, por ordem do papa Gregório XIII, com a bula "Inter Gravissimas", de 24 de Fevereiro, logo seguida em Portugal e noutros países católicos, depois de uma comissão de sábios, liderada pelo jesuíta alemão que estudou na Universidade de Coimbra Cristóvão Clavius, ter preparado cuidadosamente a proposta. O dia 4 de Outubro de 1582, que passou a 15 de Outubro, foi o primeiro dia do novo calendário. Na data do nascimento de Newton havia uma diferença de 10 dias entre os dois calendários, diferença essa que depois se alargou. A Inglaterra adoptou o calendário gregoriano em 2 de Setembro de 1752 do calendário antigo (14 de Setembro no novo), pelo que os eventos ocorridos em Inglaterra entre 1582 e 1752 podem aparecer com duas datas (a antiga e a nova).

Também nasceram no dia de Natal o químico canadiano de origem alemã Gerhard Herzberg (Prémio Nobel da Química de 1971 pelos seus trabalhos de espectroscopia molecular) e o físico alemão Ernst Ruska (Prémio Nobel da Física de 1986 pela sua invenção do microscópio electrónico).

AS "CHRISTMAS LECTURES"


As "Christmas Lectures", conferências de divulgação da ciência realizadas em Londres sempre por altura do Natal, são uma tradição anual especialmente dedicada a crianças e jovens que remonta a 1825 (só interrompida durante a Segunda Guerra Mundial). Realizam-se ao vivo, na Royal Institution, mas agora há gravações para ver na televisão (durante muitos anos foi na BBC, mas agora tem passado em canais privados) e até na Internet. Podem ver-se no "You Tube" conferências famosas dadas por nomes famosos como Carl Sagan e Richard Dawkins.

Foi Michael Faraday (1791-1867), um dos "monstros sagrados" daquela Instituição, quem criou essa série de conferências. Ele próprio protagonizou ele próprio algumas das "Christmas Lectures" mais famosas, como por exemplo em 1860 "A história química de uma vela" (que depois foi um dos textos de divulgação da ciência mais famoso do século XIX) . Como estamos em época natalícia, transcrevo o início da primeira conferência sobre a química da vela:

"Proponho apresentar-lhes, no decorrer destas conferências, a história química de uma vela. Farei isto como uma retribuição à honra que os senhores me deram vindo aqui para ver como são as nossas formas de actuação. Analisei este assunto noutra ocasião e, se fosse pelo meu desejo, preferiria repeti-lo quase cada ano, tão grande é o interesse que desperta e tão grandes são as variedades de resultados que ele oferece aos vários domínios da filosofia. Não existe lei pela qual seja regida qualquer parte deste Universo que não entre em acção e não seja abordada nestes fenómenos. Não há porta melhor nem mais aberta para que os senhores possam iniciar o estudo da filosofia natural do que o exame dos fenómenos físicos de uma vela. Espero, portanto, não os desapontar ao escolher este assunto como meu tema e não um novo tópico, que não poderia ser melhor do que ele, embora pudesse até igualá-lo.

Antes de prosseguir, deixem-me dizer algo mais: apesar do nosso assunto ser tão vasto, e de ser nossa intenção tratá-lo honesta, séria e filosoficamente, não pretendo, no entanto, preocupar-me com aqueles entre os senhores que já são adultos. Quero o privilégio de poder falar para jovens e da forma como um jovem faz. Tenho feito isso noutras ocasiões e, se permitirem, vou fazê-lo novamente. Apesar do facto de eu aparecer aqui como quem tem o conhecimento das palavras que devem ser oferecidas ao mundo, isso não me deve impedir de falar de modo coloquial com aqueles que pretendo que estejam mais próximos de mim nesta ocasião."

-Michael Faraday, "A história química de uma vela. As forças da matéria", com uma introdução de James Clerk Maxwell, com ilustrações originais do autor da edição inglesa de 1861, tradução de Vera Ribeiro com revisão técnica de Ildeu de Castro Moreira, ligeiramente revista para a adaptar ao português europeu). O texto original, em inglês, encontra-se aqui.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

O MENINO JESUS E O SAPATINHO


Quando era miúdo, e, na véspera de Natal, punha o sapatinho na chaminé, sempre me perguntei como poderia o menino Jesus ir distribuir presentes a todas as crianças por esse mundo fora, numa só noite.

Afinal a explicação é simples:

Na noite de Natal, o menino Jesus está numa sobreposição de estados quânticos, espalhados por todo o planeta, e em cada estado quântico distribui presentes a uma criança. Por isso é tão importante que as crianças estejam a dormir, quando vem o menino Jesus, pois basta que uma crianças veja o menino Jesus para destruir a sobreposição, e mais nenhuma criança receba presentes nesse Natal.

Adaptado de "Sean Smeltzer, Croydon, Surrey, New Scientist, January 16, 1999"

O quadro é a "Madonna Litta" baseado num sketch de Leonardo da Vinci e está na Hermitage, em St. Petersburg.

Boas Festas!
Luís Alcácer

Dia de Natal

O poema "Dia de Natal" de António Gedeão (pseudónimo literário do professor e divulgador de ciências Rómulo de Carvalho) está incluído no livro "Máquina de Fogo" de 1961 (livro por sua vez incluído na "Obra Completa", Relógio d'Água, 2004, com nota introdutória de Natália Nunes).

Porque hoje é dia de Natal, valerá a pena lê-lo:


"Hoje é dia de era bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.

É dia de pensar nos outros— coitadinhos— nos que padecem,
de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.

Comove tanta fraternidade universal.
É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,
como se de anjos fosse,
numa toada doce,
de violas e banjos,
Entoa gravemente um hino ao Criador.
E mal se extinguem os clamores plangentes,
a voz do locutor
anuncia o melhor dos detergentes.

De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu
e as vozes crescem num fervor patético.
(Vossa Excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu?
Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.)

Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas.
Toda a gente se acotovela, se multiplica em gestos, esfuziante.
Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas
e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante.

Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates,
com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,
cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,
as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.

Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito,
ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores.
É como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito,
como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bênçãos e favores.

A Oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.
Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar.
E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento
e compra— louvado seja o Senhor!— o que nunca tinha pensado comprar.

Mas a maior felicidade é a da gente pequena.
Naquela véspera santa
a sua comoção é tanta, tanta, tanta,
que nem dorme serena.

Cada menino
abre um olhinho
na noite incerta
para ver se a aurora
já está desperta.
De manhãzinha,
salta da cama,
corre à cozinha
mesmo em pijama.

Ah!!!!!!!!!!

Na branda macieza
da matutina luz
aguarda-o a surpresa
do Menino Jesus.

Jesus
o doce Jesus,
o mesmo que nasceu na manjedoura,
veio pôr no sapatinho
do Pedrinho
uma metralhadora.

Que alegria
reinou naquela casa em todo o santo dia!
O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas,
fuzilava tudo com devastadoras rajadas
e obrigava as criadas
a caírem no chão como se fossem mortas:
Tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.
Já está!

E fazia-as erguer para de novo matá-las.
E até mesmo a mamã e o sisudo papá
fingiam
que caíam
crivados de balas.

Dia de Confraternização Universal,
Dia de Amor, de Paz, de Felicidade,
de Sonhos e Venturas.
É dia de Natal.
Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade.
Glória a Deus nas Alturas."

António Gedeão

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

In Rust we Trust


Um dos nossos leitores enviou-nos um mail sobre algo que suspeitava (com imensa razão) ser uma charlatanice e que consiste numa coisa que dá pelo pomposo nome «hidrolinfa».

Esta tal hidrolinfa (nunca percebi o fascínio pela água de tanto charlatão...) não passa de uma versão lusa dos Aqua Detox que infestam qual praga o mundo em geral, os países anglo-saxónicos em particular. Em Portugal, são construídas e comercializadas por algo com o nome pomposo MENP - Fabrico de Máquina de Saúde e Ecologia que faz parte d'«O Departamento de Desenvolvimento Tecnológico e Científico (T.S.D. - Technological & Scientific Development), que trabalha em exclusivo para a UPN - Universidade Profissional do Norte».

A abusivamente auto-denominada Universidade, ministra «cursos» numa gama abrangente de banhas da cobra, de homeopatetices a naturopatetices, exibindo ainda uma «pós-graduação» em ...hipnose! Não sei se a naturopateta que «tratou» um conhecido meu se «formou» nesta coisa, mas certamente adquiriu o seu instrumento principal de trabalho às empresas associadas De facto, a mulher desse conhecido, mais céptica, inquiriu-me sobre os «tratamentos» que me descreveu, incluindo na descrição a maquineta, que descobri agora ser se não a tal «hidrolinfa» uma congénere, e os resultados de uma detoxificação pelos pés como a ilustrada.

Na altura disse á pessoa que me inquiriu, só pela descrição, que não é preciso saber muita química, apenas olhar para a água ferrugenta que sai volta e meia dos canos, para perceber o que aconteceu. De facto, os charlatães extorquem dinheiro aos mais incautos com um vulgar banho de pés complementado com eléctrodos que quando ligados à corrente e na presença dos sais com que é temperada a água se corroem. A cor dos sais de ferro que se formam depende do cocktail adicionado à água (é simples ferrugem com água da torneira) e do pH da mesma e não tem nem remotamente nada a ver com a saída de toxinas pelos poros dos pés (!).

Aliás, não percebo muito bem o que sejam as toxinas que entraram no léxico de todos os charlatães das medicinas alternativas mas todas as substâncias tóxicas que produzimos são incolores, nomeadamente «o Colesterol, Triglicerídios, Ureia, Glicose (nunca me passou pela cabeça que um açúcar fosse considerado uma toxina), Creatinina e Ácido Úrico» que os vendedores de banha da cobra afirmam peremptoriamente que «A terapia HidroLinfa, ao coincidir nos poros existentes na planta dos pés, exercita a diminuição imediata comprovada». Na realidade, estas «toxinas» são excretadas naturalmente na urina e na transpiração.

Embora já soubesse da existência da coisa não tinha ideia da sua dimensão e assim agradeço as informações gentilmente transmitidas pelo nosso leitor que me permitiram ler incrédula o monte de dislates químicos com que os charlatães da UPN enganam os mais incautos e que podem ser apreciados em todo o seu esplendor na página em que publicitam a coisa.

Estes são tantos e tão variados, aliás, não há quasi uma linha do longo texto que não seja um disparate químico, que não sei qual me escandalizou mais. Não sei se a afirmação extraordinária de que «toxinas e venenos são incompletos, falta-lhes um electrão negativo» - o que é um total disparate, e não estou a referir-me ao pleonasmo electrão negativo -, ou se as efabulações sobre o hidrogénio, em particular sobre o hidreto (H-), supostamente formado no «Tratamento HidroLinfa, rico em iões negativos, aumenta o número de electrões de carga negativa no organismo humano, aumentando assim os iões negativos que transformam o hidrogénio em (H-)», uma barbaridade total. Assim como é uma barbaridade total dizer que «O oxigénio não actua sem o hidrogénio, a fusão destes dois elementos, transforma-se em energia», um delírio quasi tão idiota como as considerações sobre o ATP ou sobre o equilíbrio de pH fisiológico que o aparelhómetro supostamente mantém.

Sobre este último, é importante esclarecer que nós somos quimicamente muito bem regulados, nomeadamente a nível de pH que é mantido numa gama muito estreita de valores por uma série de tampões biológicos como sejam o que envolve bicarbonato (e o dióxido de carbono), o fosfato e várias proteínas (ficheiro em formato pdf que explica a regulação fisiológica do pH). Mas essencialmente importa esclarecer e sobretudo regular as ditas «terapias naturais» e acabar de uma vez por todas com fraudes magnéticas, quânticas, homeopatetas e afins. Como concluiu o professor Edzard Ernst após ter recuperado da estase em que esteve mergulhado e que o levou a leccionar banhas da cobra sortidas, «A maioria das terapias alternativas são clinicamente ineficientes e muitas são totalmente perigosas».

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Criacionismo Redux

O último número da Scientific American tem um artigo absolutamente imperdível de Eugenie Scott e Glenn Branch, os directores executivo e delegado do National Center for Science Education. O artigo «The Latest Face of Creationism in the Classroom» trata da evolução dos pseudo argumentos dos criacionistas para impor como ciência as suas crenças religiosas, travestidos hoje em dia em legislação em defesa de «liberdade académica». O artigo é muito extenso e aborda assuntos já tratados no De Rerum Natura, mas vale a pena lê-lo porque permite acompanhar as estratégias criacionistas ao longo dos anos. Um pequeno excerto:

Creationists have long battled against the teaching of evolution in U.S. public schools, and their strategies have evolved in reaction to legal setbacks. In the 1920s they attempted to ban the teaching of evolution outright, with laws such as Tennessee’s Butler Act, under which teacher John T. Scopes was prosecuted in 1925. It was not until 1968 that such laws were ruled to be unconstitutional, in the Supreme Court case Epperson v. Arkansas. No longer able to keep evolution out of the science classrooms of the public schools, creationists began to portray creationism as a scientifically credible alternative, dubbing it creation science or scientific creationism. By the early 1980s legislation calling for equal time for creation science had been introduced in no fewer than 27 states, including Louisiana. There, in 1981, the legislature passed the Balanced Treatment for Creation-Science and Evolution-Science in Public School Instruction Act, which required teachers to teach creation science if they taught evolution.

The Louisiana Balanced Treatment Act was based on a model bill circulated across the country by creationists working at the grassroots level. Obviously inspired by a particular literal interpretation of the book of Genesis, the model bill defined creation science as including creation ex nihilo (“from nothing”), a worldwide flood, a “relatively recent inception” of the earth, and a rejection of the common ancestry of humans and apes. In Arkansas, such a bill was enacted earlier in 1981 and promptly challenged in court as unconstitutional. So when the Louisiana Balanced Treatment Act was still under consideration by the state legislature, supporters, anticipating a similar challenge, immediately purged the bill’s definition of creation science of specifics, leaving only “the scientific evidences for creation and inferences from those scientific evidences.” But this tactical vagueness failed to render the law constitutional, and in 1987 the Supreme Court ruled in Edwards v. Aguillard that the Balanced Treatment Act violated the Establishment Clause of the First Amendment to the Constitution, because the act “impermissibly endorses religion by advancing the religious belief that a supernatural being created humankind.”

Creationism adapts quickly. Just two years later a new label for creationism—“intelligent design”—was introduced in the supplementary textbook Of Pandas and People, produced by the Foundation for Thought and Ethics, which styles itself a Christian think tank. Continuing the Louisiana Balanced Treatment Act’s strategy of reducing overt religious content, intelligent design is advertised as not based on any sacred texts and as not requiring any appeal to the supernatural. The designer, the proponents say, might be God, but it might be space aliens or time-traveling cell biologists from the future. Mindful that teaching creationism in the public schools is unconstitutional, they vociferously reject any characterization of intelligent design as a form of creationism. Yet on careful inspection, intelligent design proves to be a rebranding of creationism—silent on a number of creation science’s distinctive claims (such as the young age of the earth and the historicity of Noah’s flood) but otherwise riddled with the same scientific errors and entangled with the same religious doctrines.

Such a careful inspection occurred in a federal courtroom in 2005, in the trial of Kitzmiller v. Dover Area School District. At issue was a policy in a local school district in Pennsylvania requiring a disclaimer to be read aloud in the classroom alleging that evolution is a “Theory...not a fact,” that “gaps in the Theory exist for which there is no evidence,” and that intelligent design as presented in Of Pandas and People is a credible scientific alternative to evolution. Eleven local parents filed suit in federal district court, arguing that the policy was unconstitutional. After a trial that spanned a biblical 40 days, the judge agreed, ruling that the policy violated the Establishment Clause and writing, “In making this determination, we have addressed the seminal question of whether [intelligent design] is science. We have concluded that it is not, and moreover that [intelligent design] cannot uncouple itself from its creationist, and thus religious, antecedents.”

The expert witness testimony presented in the Kitzmiller trial was devastating for intelligent design’s scientific pretensions. Intelligent design was established to be creationism lite: at the trial philosopher Barbara Forrest, co-author of Creationism’s Trojan Horse: The Wedge of Intelligent Design, revealed that references to creationism in Of Pandas and People drafts were replaced with references to design shortly after the 1987 Edwards decision striking down Louisiana’s Balanced Treatment Act was issued. She even found a transitional form, where the replacement of “creationists” by “design proponents” was incomplete—“cdesign proponentsists” was the awkward result. More important, intelligent design was also established to be scientifically bankrupt: one of the expert witnesses in the trial, biochemist Michael Behe, testified that no articles have been published in the scientific research literature that “provide detailed rigorous accounts of how intelligent design of any biological system occurred”—and he was testifying in defense of the school board’s policy.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

O FOGO DE PROMETEU

Novo post convidado de J. Norberto Pires:

Com uma das imagens mais espectaculares da Missão Cassini - Huygens a Saturno desejo a todos
Feliz Natal e Próspero Ano Novo.


Esta imagem mostra Prometeu (à esquerda, com 102 km de comprimento) e Pandora (com 53 km de comprimento), duas das luas de Saturno, com o famoso rasto de gelo que constitui o Anel F de Saturno.

Prometeu é um deus especial da mitologia Grega. Roubou o segredo do fogo a Zeus, deus dos deuses, e deu-o aos homens para que evoluíssem e se diferenciassem dos outros animais.


Prometeu a trazer o fogo à humanidade (pintura de Heinrich Fueger, 1817)

Como castigo Zeus ordenou ao deus Vulcano que o acorrentasse no topo do monte Cáucaso para ser castigado durante 30.000 anos. O castigo era ser devorado aos poucos por uma águia que todos os dias lhe comia um pouco do fígado, o qual se regenerava logo de seguida porque Prometheus era um deus. Prometeu foi libertado por Hércules ficando no seu lugar o centauro Quíron que se ofereceu para o substituir (Zeus colocou isso como condição). Prometeu foi convidado a regressar ao Olimpo desde que mantivesse a corrente e a pedra a que foi acorrentado.

Prometeu representa a vontade humana na procura de conhecimento, e o roubo do segredo do fogo representa a nossa audácia em procurar o conhecimento e em divulgá-lo pelos outros como forma de evolução (evitando os seres maiores - os deuses da mitologia - detentores de todo conhecimento).


Vulcano a acorrentar Prometeus (pintura de Dirck van Baburen, 1623)

Mas o castigo de Zeus era também constituído por Pandora (a “bem parecida”) que foi a primeira mulher criada por Zeus com o objectivo de ser um ardil, pois tinha a chamada “caixa de Pandora” onde estavam todos os males (a esperança vinha só no fundo da caixa). Pandora tinha um pouco de todos os deuses do Olimpus: Hefesto moldou-a em argila, Afrodite deu-lhe a beleza, Apolo o seu talento musical, Poseidon a capacidade de não se afogar, Atena a habilidade de mãos, Deméter a colheita e Hera a curiosidade. Zeus deu-lhe ainda algumas qualidades pessoais e a famosa caixa onde estavam todos os males que afligiriam todos os homens nascidos depois do roubo de Prometeu. Mas Prometeu desconfiou do “presente” e rejeitou Pandora, que achou pouco sensata e fútil, enviando-a a Ephimeteus seu irmão que casou com ela.


Como Pandora foi feita pelos Deuses do Olimpo (Cylix, 470-460 a.c.)


A virgem Pandora segurando a famosa caixa (pintura de Joseph Lefevbre, 1882)

A imagem de Saturno, com Prometeu e Pandora, mostra que com este espírito de permanente procura e de partilha de conhecimento o homem foi capaz de chegar onde já chegou, resistindo a todas as Pandora(s) e todos males que anunciavam. Uma permanente e constante fuga ao obscurantismo e à mediocridade que só o conhecimento e a ciência podem proporcionar.

A mensagem do Natal, é uma mensagem de esperança, sem punições e sem seres a quem tudo é permitido enquanto os outros, sem privilégios, vivem na escuridão. É uma mensagem de fraternidade, de confiança nos homens e de olhos postos no futuro.

Gostaria ainda que lembrassem o grande General Pirro que foi um rei infatigável e muito trabalhador, mas sem ser propriamente sábio (também hoje, ser “sábio” é algo acessório). Famoso pelas suas campanhas militares, e considerado por muitos um dos maiores generais do seu tempo, depois de Alexandre Magno, era benevolente e amigo do seu amigo.


General Pirro (318-272 a.C.)

No entanto, tinha grandes defeitos, sendo os mais apontados a impressionante falta de concentração (muito belicoso mas pouco focado em objectivos estratégicos e demasiado voluntarioso) e a apetência para esbanjar recursos (nomeadamente os financeiros: os seus exércitos eram compostos por dispendiosos mercenários).

Ficou famoso pela vitória na Batalha de Ásculo (279 a.C.) contra os romanos. Obtida muito a custo, Pirro perdeu 3500 homens e os romanos cerca de 6000. Um aparente sucesso, mas quando lhe davam os parabéns respondeu: “Mais uma vitória destas e estou perdido”. De facto, não teria condições para outra batalha com os romanos. São as famosas vitórias de Pirro.


Num tempo onde já não há heróis (veja-se como ruiu o aparente sucesso ocidental), onde a confiança nas pessoas e nas organizações atingiu um ponto muito baixo (os campeões do sucesso afinal eram simples jogadores: o grande general Pirro morreu, diz a lenda, numa das suas mais confusas batalhas travada em Argos (onde não tinha verdadeiramente objectivos – mais uma batalha sem sentido), depois de ser atingido por uma telha atirada à sua cabeça por uma velha que observava a batalha do telhado de sua casa, que ao atingi-lo o atordoou e permitiu que fosse morto por um simples soldado), onde de repente ficou evidente para muitos o lado negro e muito assustador dos homens, vale a pena lembrar que todo o nosso sucesso pode afinal ser uma vitória de Pirro: aquelas que de facto nos deixam em pior situação.


Os nossos sucessos podem facilmente ser deste tipo se não forem o resultado de uma estratégia bem delineada, que tem por base verdadeiros ganhos que são necessariamente civilizacionais e colectivos, num caminho que se faz caminhando, passo-a-passo, com objectivos de longo prazo que são superiores a nós: vivendo como pensamos sem pensar como viveremos.


É também este o espírito do Natal, que resiste, apesar de tudo, há mais de 2000 anos.


Feliz Natal e Bom Ano Novo.

J. Norberto Pires

Nota: Todas as imagens deste post foram retiradas do site da NASA e de vários locais na Internet, onde não constavam notas de copyright. De qualquer forma não se viola qualquer direito de copyright visto que são utilizadas como ilustração sem qualquer interesse comercial.

Fontes:
Walter Burkert (1985) Greek Religion, Harvard University Press, 1985.
Graves, Robert, The Greek Myths, 1955.
Lenardon, R. and M. Morford, Classical Mythology: Seventh Edition, Oxford, 2002.
Kerenyi, Karl, The Gods of the Greeks, 1951.
Edith Hamilton, Mythology: Timeless Tales of Gods and Heroes, 1942.

Um teste para overdose de paracetamol?


O acetaminofeno (N-acetil-p-aminofenol), mais conhecido como paracetamol, é um analgésico e anti pirético popular e largamente utilizado em Portugal e no mundo.

A acetanilida, a substância parente, foi introduzida em 1886 com o nome de anti-febrina por Cahn and Hepp que descobriram acidentalmente a sua acção anti pirética. No entanto, a acetanilida era demasiado tóxica - tal como a ácido salicílico, então campeão de vendas. O ácido salicílico seria destronado a breve trecho pelo ácido acetilsalicílico - a aspirina que substituiu o ácido salícilico em que se transforma no organismo humano a salicilina da casca do salgueiro. De facto, pouco depois de Felix Hoffmann em 1897 ter simplificado o método de síntese da aspirina descoberto 44 anos antes por Charles Gerhardt, a Bayer começou a testar a aspirina em dezenas de pacientes e em 1899, depois de registar a patente, enviou informação sobre o seu produto milagroso a 3000 médicos europeus que ajudaram a transformar a aspirina no medicamento mais vendido no mundo.

Tal como no caso da salicilina, procurou-se derivados menos tóxicos da acetanilida, primeiro o p-aminofenol (ainda muito tóxico) e depois a fenacetina (acetofenetidina). Esta última foi introduzida na terapêutica em 1887 sendo extensivamente usada em misturas analgésicas antes de ter sido implicada em casos de nefrotoxicidade provocada por sobredosagens. Outro derivado utilizado, logo em 1893 por Von Mering, foi o acetaminofeno, o principal metabolito quer da acetanilida como da fenacetina. O paracetamol teve de esperar por 1949 para ganhar a popularidade actual, nomeadamente como alternativa a alguns analgésicos e anti-inflamatórios que provocam lesões a nível do esófago, estômago e intestino.

No entanto, mesmo quando tomado dentro das doses recomendadas, o paracetamol pode causar lesões no fígado e, em casos mais graves, episódios hepáticos fulminantes que podem levar à morte. A intoxicação por paracetamol raramente é mortal nas crianças que não atingiram a puberdade, por razões que não se compreendem bem.

Em Inglaterra, por exemplo, morrem anualmente cerca de 200 pessoas de overdose de paracetamol e no ano passado 20 foram sujeitas a transplante hepático pelos mesmos motivos. O problema é que os sintomas aparecem ao fim de alguns dias e muitos pacientes chegam aos hospitais quando é demasiado tarde para um transplante lhes salvar a vida. Varuna Aluvihare, um hepatologista do King's College Hospital, Londres, descobriu recentemente algo que pode permitir salvar a vida dos utilizadores deste medicamento que o tomem em excesso. Aluvihare descobriu que a urina dos pacientes com maiores danos hepáticos apresenta elevados níveis de ciclofilina A*. Esta descoberta pode ser utilizada no desenvolvimento de um teste para determinar mais rapidamente se um determinado paciente necessita um transplante hepático.

Mas enquanto esse teste não é desenvolvido, porque a época a isso propicia, convém recordar que é completamente contra-indicado ingerir paracetamol para combater as consequências do excesso de álcool - o álcool, jejum prolongado e vómitos excessivos podem inibir a produção das enzimas envolvidas na sua metabolização, como sejam as peroxidases -, aumentando assim a toxicidade do paracetamol. E entretanto, recupero os posts que escrevi por esta altura no ano passado sobre não ser má ideia para os seus apreciadores beber vinho, tinto, claro, nas libações que se aproximam.

*Um complexo dsta peptidil-propil–isomerase com o imunodepressor ciclosporina A inibe a actividade fosfatase da calcineurina - que por sua vez inibe a expressão de genes de proteínas nucleares envolvidas na activação celular e formação de linfócitos T citotóxicos - que se pensa estar envolvida na rejeição de orgãos transplantados. Mais recentemente, descobriu-se que esta proteína é incorporada na formação novos vírus na infecção com o HIV.

CIÊNCIA E FÉ


O semanário "Expresso" colocou-me algumas perguntas sobre ciência e fé para um trabalho que foi publicado no último número da revista "Única". Aqui estão elas juntamente com as respostas:

P- A circunstância de um cientista ter uma fé religiosa de qualquer tipo, isto é, ser crente, condiciona-o no seu trabalho? Limita-o? Tira-lhe objectividade, discernimento ou capacidade de análise?

R- Há, como sempre houve, muitos cientistas crentes e há também muitos cientistas não crentes. De entre os primeiros é justo destacar o italiano Galileu Galilei e o inglês Charles Darwin, cujas obras são motivo para comemorações à escala mundial em 2009, que protagonizaram episódios de conflito entre ciência e religião (Darwin chegou a estudar para pastor anglicano, foi uma pessoa religiosa durante largos anos e só no fim da sua vida se declarou agnóstico). Mas pode também referir-se o inglês Isaac Newton e o checo Gregor Mendel (este último era mesmo monge agostiniano). Nos cientistas ateus ou agnósticos, o caso do norte-americano e suíço Albert Einstein é algo especial pois ele, à maneira do holandês Bento Espinosa, substituía Deus pela “harmonia cósmica”. Podem também incluir-se nesse grupo os norte-americanos Richard Feynman e Carl Sagan, embora estes tenham sempre respeitado e até enaltecido o sentido do religioso (o segundo procurou até bastante a aproximação com líderes religiosos, nomeadamente em defesa do nosso planeta). Alguns cientistas deste segundo grupo têm vindo a ter intervenções bastante mediatizadas nos últimos tempos em favor do ateísmo: por exemplo, o biólogo inglês Richard Dawkins, que tem empreendido uma espécie de “cruzada” contra a religião, e o físico norte-americano, galardoado com o Nobel da Física tal como Einstein e Feynman, Steven Weinberg, talvez menos prosélito do que Dawkins mas também com posições ateístas bastante claras. Não conheço estatísticas sobre a crença dos cientistas, mas, sendo estes pessoas comuns antes de serem cientistas, é natural que neles se encontrem os mesmos fenómenos de crença ou de descrença que se encontram na sociedade em geral. Em particular, é natural que se encontrem nos cientistas as mesmas afiliações religiosas que se encontram na sociedade em que vivem (um outro Prémio Nobel da Física, o físico paquistanês Abdul Salam, era muçulmano). Como a sociedade moderna é mais laica e como a “confissão” pública de descrença é mais socialmente aceitável, é também natural que cada vez mais se ouçam vozes de cientistas que expressam dúvidas sobre Deus ou mesmo que afirmam as suas certezas individuais em desfavor de Deus.

Dito isto, fica claro que se pode ser cientista e ter ao mesmo tempo uma fé religiosa. Muitos exemplos da história da ciência e da actualidade mostram que é pacífica a coexistência de ciência e religião. De uma forma apenas metafórica, direi que ocupam partes do cérebro diferentes. Não penso, por isso, que a crença religiosa de um cientista o limite, que lhe retire objectividade na ciência que faz. Um cientista sabe que quando está num laboratório, não está numa igreja e que quando está numa igreja não está num laboratório. Claro que haverá sempre excepções que confirmarão esta regra...

P- Qual é a diferença fundamental entre uma teoria científica e uma crença religiosa?

R- Ciência e religião devem ser vistas como maneiras diferentes, muito diferentes até em vários aspectos, de encarar o mundo, que correspondem a necessidades humanas diferentes. Apesar das diferenças, julgo que elas fazem bem em respeitar-se mutuamente. A ciência é a descoberta do mundo, recorrendo à racionalidade e à experimentação. Está pronta a corrigir os erros se houver suficiente evidência para eles, conseguindo assim progredir ao longo do tempo. A religião é um outro tipo de visão do mundo, que não assenta na racionalidade nem na experimentação. Assenta em geral em dogmas que têm uma tradição histórica profunda e que não podem ou que muito dificilmente podem ser revistos. Quando um cientista é dogmático não está a ser científico. E quando um religioso está disposto a rever continuamente as verdades da sua religião, não está a ser religioso.

Nos casos de Galileu e Darwin houve "choque" entre descobertas científicas e dogmas estabelecidos relativos ao lugar da Terra e no Universo e à origem do homem. O caso de Galileu, o autor do método científico, está hoje reconhecidamente ultrapassado, tendo até a Igreja Católica, passados vários séculos, reconhecido o seu erro. Parece até que Galileu vai ter uma estátua nos jardins do Vaticano. No caso de Darwin, que curiosamente está sepultado na catedral de Westminster, em Londres, o ”choque” chegou até aos dias de hoje, com os criacionistas a combaterem a teoria da evolução por vários meios, principalmente nos Estados Unidos, mas já com preocupantes afloramentos na Europa. No blogue “De Rerum Natura” temos acompanhado esses desenvolvimento não de uma forma neutra, mas tomando partido pela ciência e contra a anti-ciência que o criacionismo representa. De facto, querer como alguns querem que nas aulas de ciência se ensine o criacionismo ao mesmo tempo que o evolucionismo é um absurdo completo pois não se pode ensinar como ciência o que é precisamente o oposto dela. O irracional poderá ocupar o seu lugar, mas não pode ocupar o lugar do racional. Uma tal atitude poderia até ser um atentado contra a democracia, pois alguns autores dessas ideias perseguem ideais teocráticos, que no fundo pretendem a subordinação do Estado a ideologias religiosas.

P- Quando se discutem (ou testam, como no LHC) os primeiros instantes do Universo há espaço para a ideia da intervenção divina na criação?

R- A ideia de que houve um “Big Bang”, isto é, o início do espaço-tempo, tem uma base lógico-empírica bastante sólida. Neste momento não há sequer uma teoria alternativa que seja minimamente consistente. Portanto, não é uma ideia de base religiosa. O facto de essa ideia moderna coincidir, apenas de uma maneira geral e vaga, com uma ideia bastante antiga da Igreja Católica, é sem dúvida curioso. A este respeito lembro que um dos autores da teoria do “Big Bang” foi o astrofísico belga Georges Lemaître, que era sacerdote católico. E acrescento que vários altos dirigentes religiosos se congratularam com o que chamaram a “base científica” da criação descrita na Bíblia. Mas é óbvio desde o tempo de Galileu que a Bíblia não é um livro de ciência... Os astrofísicos não trabalharam com base na Bíblia para agradar ao Papa. Olham com atenção para o céu com poderosos telescópios, instrumentos muito superiores aos que Galileu usou há quase 400 anos, e são hoje capazes de fazer experiências na Terra que recriam, por pequenos tempos e em pequenos espaços, as condições que terão existido por todo o lado no cosmos primitivo. As suas conclusões, por absoluta falta de informação, nada dizem sobre o que se terá passado antes do “Big Bang” (a pergunta sobre a causa do “Big Bang” é legítima, mas não pode ser respondida pela ciência). Os astrofísicos não podem nem aliás querem provar a existência ou a inexistência de Deus. O astrofísico inglês Stephen Hawking e outros falam, de facto, de Deus, mas trata-se de uma imagem, uma imagem que tem força e impacte... Einstein também falava de Deus sem acreditar em qualquer Deus pessoal. O físico norte-americano Leon Lederman fala de “partícula de Deus” a propósito do procurado bosão de Higgs. Essas imagens podem ser e são muitas vezes perigosas porque dão a entender que há uma mistura entre ciência e religião quando, de facto, não há. Elas mostram apenas que alguns cientistas são uns bons comunicadores...

P- A Igreja Católica tem uma longa história de repressão e condicionamento do pensamento científico que remonta, pelo menos, a Galileu? A posição actual é diferente?

R- Sim, a Igreja Católica já se penitenciou a propósito do caso Galileu. Há hoje um Observatório Astronómico no Vaticano, a cargo de jesuítas, onde se realiza investigação científica. O próprio Papa tem convocado cientistas e teólogos para alguns encontros sobre ciência e fé. Também não penso que haja tensão actualmente a propósito da evolução, embora possa haver a esse respeito palavras menos felizes de um ou outro membro do clero. Nisto a Igreja Católica distingue-se de algumas igrejas evangélicas, que têm ideias radicais baseadas na Bíblia. Contudo, não se pode dizer que não haja tensão entre a ciência e a Igreja a respeito de outros assuntos, nomeadamente sobre os limites éticos da moderna investigação biomédica. Muitos biólogos e médicos acham que são conservadoras as posições oficiais da Igreja sobre algumas questões de biologia e medicina, nomeadamente a utilização de células estaminais. Provavelmente assistiremos a uma evolução das posições da Igreja neste domínio à medida que a ciência evoluir e a tecnologia associada se revelar benfeitora do homem.

P- O cientista no seu trabalho segue um protocolo rigoroso, com verificação de leituras, comprovação de factos e cálculos, etc. Fica alguma lugar para a inspiração, para a criatividade, para o «tiro do escuro»?

R- Em primeiro lugar, embora sem ser de tipo religioso, o cientista também tem crenças no seu trabalho. Um cientista tem de acreditar na sua hipótese. A grande diferença relativamente à fé religiosa é que o cientista tem de estar preparado para deixar de acreditar na sua hipótese se a experiência não a confirmar. Sim, há um grande lugar para a inspiração e para a livre criatividade no trabalho científico. Por exemplo, só certos génios são capazes de certas hipóteses geniais. E nem eles sabem de onde lhe vêm essas intuições. Pode dizer-se até que há algo de irracional na racionalidade científica, embora as modernas neurociências tenham vindo a procurar esclarecer o modo como funciona o cérebro humano. Vai, com certeza, saber-se mais sobre ele e talvez se verifique que a criatividade em ciência não é lá muito diferente da criatividade artística - o cérebro encontra subitamente unidade em algo que parecia desunido. De repente, estabelece um sentido onde não parecia haver sentido nenhum. Faz-se luz onde estava escuro. O cérebro humano parece “feito” para procurar um sentido razoável das coisas. É racional. Mas convém acrescentar que o cérebro humano também parece “feito” para dar sentidos não razoáveis, também é irracional. Alberga tanto a racionalidade como a irracionalidade. Na linha de Darwin, há desenvolvimentos científicos recentes que atribuem à evolução humana a origem e desenvolvimento das religiões. Acreditar terá sido uma vantagem competitiva, tanto para um indivíduo como para o seu grupo. Isto é, a pertença a um grupo religioso terá sido um factor que ajudou à sobrevivência do indivíduo e do grupo. Esta ideia, expressa por exemplo pelo filósofo norte-americano Daniel Dennett ou pelo biólogo inglês Lewis Wolpert, ainda não é consensual e está a fazer o seu caminho. Não sabemos ainda o suficiente, mas é curioso que o aparecimento e a afirmação do fenómeno religioso sejam hoje objecto de pesquisa científica...

P- Há descobertas por acaso, como a da penicilina. A «serendipidade» é aliás frequente na história das grandes descobertas. Que papel pode ter o acaso na descoberta científica?

R- O acaso tem certamente um papel na descoberta científica. Acontecem coisas aos cientistas – por exemplo estar num certo sítio a uma certa hora – que podiam não acontecer. Claro que é preciso estar atento ao acaso, que só assim pode ser um acaso criativo. Por exemplo, as descobertas da radioactividade e dos raios X, no final do século XIX, poderão ter sido casuais. Contudo, distinguiria esse tipo de acaso da “fezada”, a intuição do que vai acontecer que se expressa sob a forma de uma hipótese científica. Uma hipótese não costuma ser por acaso, antes se baseia em teses anteriores devidamente testadas e comprovadas.